domingo, 3 de março de 2013

O mar à noite (A costura do mundo)




Um mês sem crônica nova deveria render algum assunto, certo? Afinal de contas, foram férias em Tiradentes, fim de semana em Belo Horizonte, rocambole em Lagoa Dourada e carnaval em Salvador. Vários dias de viagem, e chegando em casa é que descubro o mote para a crônica:

- Ela, esfregando os olhos: “acho que coloquei uma das lentes pelo avesso.”
- Eu, engraçadinha: “Por que, tá vendo a etiqueta?”
- Ela, metafísica: “Tô vendo a costura... a costura do mundo”.

Cecília Meireles escreveu uma crônica que diferencia o turista do viajante. A poeta afirma-se viajante. Nada de fotografias desembestadas, guias verborrágicos, pontos de visitação obrigatória, 5 continentes em 3 dias – tudo isso é coisa de turista. O turista faz um apressado passeio pela superfície. O viajante calmamente se aprofunda. O prazer do viajante é a contemplação. Ver a costura do mundo, daquele pedaço de mundo novo, que é o destino da viagem.

Tem gente que é turista em qualquer lugar do planeta, até em casa. Tem gente que é eterno viajante. Gosto de me imaginar viajante, embora seja turista de carteirinha, máquina fotográfica dependurada no pescoço, mochila nas costas, guia quatro-rodas sempre à mão. Sou turista, admito, mas tenho meus momentos de viajante, de desejar sentir os lugares, mais que visitá-los; de querer me integrar à cidade como se eu fosse um dos seus. Às vezes dou sorte: numa breve coincidência, num ligeiro acaso, numa oportunidade fugaz, é possível transpor o tecido da cidade, esgueirar-se pela malha do lugar, chegar ao avesso, ver a costura do mundo. Parece complicado, mas sói acontecer numa breve sensação, num comentário, em algo que por acaso se ouve ou se vê. Por exemplo, em Salvador.

Primeiro dia de viagem, éramos quatro amigas sentadas na última mesa da ponta da praia. A moça da barraca, ao final do dia inteiro de trabalho, já de tardezinha, não quis me vender uma água de coco. Reparando em sua expressão, suspeitamos que o motivo era preguiça de ir buscar o coco no bar para o qual trabalhava, que ficava relativamente longe de nossa mesa. Perguntamos se era esse o motivo, ela sorrindo confirmou: era preguiça mesmo. Sorrimos também, e não pudemos nos zangar com a situação. Enxergamos nisso a costura do lugar, a trama daquele mundo que estávamos visitando – a Bahia de uma preguiça gostosa que não tem vergonha de se revelar.

Mais tarde, vimos o sol se pôr nesta mesma praia, já quase deserta. Depois a noite caiu rápido, no local não havia nenhuma luz exceto a da lua e das estrelas. Em vez de irmos embora, entramos novamente na água e vivenciamos o passeio pelo avesso, com a grata surpresa de um prazer inesperado. A água morna, as ondas mansas, o mar despovoado e de repente todo nosso!

Desconfio que só porque ousamos deixar de ser turistas em Salvador é que o mar teve a generosidade de nos revelar seus caprichos insuspeitos e suas delícias noturnas. Aquela ponta de praia era o ponto extremo do nosso velho mundo, dali em diante a viagem começava, o mundo era outro, novo e encharcado, no qual mergulhamos pra que a água salgada molhasse em nós tudo o que fosse corpo. Aí a água do mar foi além: saímos com a alma lavada. 

Essas e outras as boas lembranças da viagem a Salvador.

Hendye Gracielle