Um mês sem crônica nova deveria
render algum assunto, certo? Afinal de contas, foram férias em Tiradentes, fim
de semana em Belo Horizonte, rocambole em Lagoa Dourada e carnaval em Salvador.
Vários dias de viagem, e chegando em casa é que descubro o mote para a crônica:
- Ela, esfregando os olhos: “acho
que coloquei uma das lentes pelo avesso.”
- Eu, engraçadinha: “Por que, tá
vendo a etiqueta?”
- Ela, metafísica: “Tô vendo a
costura... a costura do mundo”.
Cecília Meireles escreveu uma crônica
que diferencia o turista do viajante. A poeta afirma-se viajante. Nada de
fotografias desembestadas, guias verborrágicos, pontos de visitação obrigatória,
5 continentes em 3 dias – tudo isso é coisa de turista. O turista faz um apressado
passeio pela superfície. O viajante calmamente se aprofunda. O prazer do
viajante é a contemplação. Ver a costura do mundo, daquele pedaço de mundo
novo, que é o destino da viagem.
Tem gente que é turista em
qualquer lugar do planeta, até em casa. Tem gente que é eterno viajante. Gosto
de me imaginar viajante, embora seja turista de carteirinha, máquina
fotográfica dependurada no pescoço, mochila nas costas, guia quatro-rodas sempre
à mão. Sou turista, admito, mas tenho meus momentos de viajante, de desejar sentir
os lugares, mais que visitá-los; de querer me integrar à cidade como se eu fosse
um dos seus. Às vezes dou sorte: numa breve coincidência, num ligeiro acaso,
numa oportunidade fugaz, é possível transpor o tecido da cidade, esgueirar-se
pela malha do lugar, chegar ao avesso, ver a costura do mundo. Parece
complicado, mas sói acontecer numa breve sensação, num comentário, em algo que
por acaso se ouve ou se vê. Por exemplo, em Salvador.
Primeiro dia de viagem, éramos
quatro amigas sentadas na última mesa da ponta da praia. A moça da barraca, ao
final do dia inteiro de trabalho, já de tardezinha, não quis me vender uma água
de coco. Reparando em sua expressão, suspeitamos que o motivo era preguiça de
ir buscar o coco no bar para o qual trabalhava, que ficava relativamente longe
de nossa mesa. Perguntamos se era esse o motivo, ela sorrindo confirmou: era
preguiça mesmo. Sorrimos também, e não pudemos nos zangar com a situação. Enxergamos
nisso a costura do lugar, a trama daquele mundo que estávamos visitando – a Bahia
de uma preguiça gostosa que não tem vergonha de se revelar.
Mais tarde, vimos o sol se pôr
nesta mesma praia, já quase deserta. Depois a noite caiu rápido, no local não
havia nenhuma luz exceto a da lua e das estrelas. Em vez de irmos embora, entramos
novamente na água e vivenciamos o passeio pelo avesso, com a grata surpresa de
um prazer inesperado. A água morna, as ondas mansas, o mar despovoado e de
repente todo nosso!
Desconfio que só porque ousamos
deixar de ser turistas em Salvador é que o mar teve a generosidade de nos
revelar seus caprichos insuspeitos e suas delícias noturnas. Aquela ponta de
praia era o ponto extremo do nosso velho mundo, dali em diante a viagem começava,
o mundo era outro, novo e encharcado, no qual mergulhamos pra que a água salgada
molhasse em nós tudo o que fosse corpo. Aí a água do mar foi além: saímos com a
alma lavada.
Essas e outras as boas lembranças
da viagem a Salvador.
Hendye Gracielle