segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Feliz aniversário pra mim! (ou A Origem das Palavras)


Penetra surdamente no reino das palavras. 
Drummond


Comemoramos essa semana meu 26º aniversário. Um quarto de século ficou definitivamente para trás, e agora me sinto assustadoramente perto dos trinta. Nessa entressafra etária, surpreendi-me meditando sobre a vida; não sobre grandes feitos, até porque não os há em minha parca existência, mas sobre pequenos acontecimentos que ajudaram a fazer de mim essa (esquisitice) que sou. Nisso acabei descobrindo que algumas simples palavras têm lugar carinhoso nas pequenas memórias de minha vida. 

Nem só de livros se constrói o léxico sentimental de uma criatura como eu. Os amigos queridos são fonte inesgotável de conotações, denotações e, por que não, chateações sintáticas. Já fui xingada de culta pela Coração Gelado, e elogiada de pedante pela querida Pratinha. Meu amigo Johnny me falou uma vez sobre os perdigotos, e um mundo de gotículas de salivas saltitantes se descortinou para mim. A propósito, eu sempre duvidei da verdadeira existência da palavra perdigoto, até o dia em que li uma citação acadêmica sobre os perdigotos de ninguém menos que Drummond! Desde então eu passei a enxergar com mais lirismo as salivinhas brilhantes que as crianças expelem ao assoprar a vela do bolo de aniversário. Que a gente come depois!

No emprego de burocrata que ocupo desde os dezenove, aprendi também umas e outras, quase sempre palavrinhas insossas como diligência e contingência (monótonas até na rima). A turma do trabalho é que me salva do tédio vocabular. Os colegas inventaram para mim a classe gramatical dos diminutivos bilíngues: chamam-me Pequena Little Hendyezinha, quando, por algum motivo inescrutável, desejam me agradar. O mais comum, entretanto, é que me aborreçam para se divertirem, e com essa finalidade eles me atribuíram a alcunha de Hendyslaine Stefanelle, conseguindo superar minha própria mãe na (duvidosa) criatividade dos nomes próprios.  

Mas se minha mãe não foi lá muito feliz na escolha do prenome – digo isso aguardando a justa reprimenda materna que virá –, na formação do meu caráter ela foi sensacional. Perdoem se me excedo na imodéstia, mas é apenas em reconhecimento filial que digo: a educação que mamãe me deu é irrepreensível. Mais que palavrinhas bonitas, ela me ensinou valores, me ensinou respeito, me ensinou generosidade, e, de quebra, me ensinou Chico, Caetano, Elis. Só não me ensinou a cozinhar, de modo que palavras como gratinar, escumadeira, marinar, banho-maria, flambar, caçarola, são para mim tão incompreensíveis quanto as mais herméticas concepções filosóficas pós-modernas.



Não posso me esquecer dos vocábulos marcantes que me vieram pelos livros, repositório mágico da palavra escrita. O Pequeno Príncipe, por exemplo, indo-se embora de um dos planetas que visitou, ensinou-me o verbo evadir: “aproveitou, para evadir-se, pássaros selvagens que emigravam”, é o trecho que sei de cor. Apesar da origem pueril, mais tarde a palavra perdeu o encanto, pois topei com ela várias vezes nas lições de Direito Penal, cujo código mais parece um compêndio das mil e uma maneiras de um infrator se evadir, sendo o habeas corpus a menos emocionante delas.

Ainda na incipiência de minhas incursões literárias, aprendi com Agatha Christie o verbo pigarrear e outras palavras de similar elegância. Em suas histórias, bandido, mocinho, vilão, ninguém começa sequer uma frase sem antes pigarrear, solenemente. Nesses romances policiais ingleses aprendi também os mais elevados hábitos de civilidade: os assassinos matam sempre com muita polidez, e as vítimas morrem com uma pontualidade britânica.

A vida foi se complicando, e as leituras tornaram-se menos inofensivas, mas sempre irresistíveis. Com Drummond a poesia entrou no meu mundo, descobri o lirismo de Minas, da melancolia e da metalinguagem, e coisas tão díspares me pareceram igualmente deslumbrantes. Com Fernando Sabino descobri que se chamava angústia aquele sofrimentozinho que me doía a alma desde sempre. Com Manuel Bandeira descobri que essa tal de angústia não tem cura. Com Augusto dos Anjos, percebi que o que não tem cura é a própria vida. Mas a gente vive, e acha bom, enquanto houver literatura (e cerveja) pra anestesiar.

Foi este o assombro dos meus vinte e seis anos: além de carne e osso (e, vá lá, algumas células adiposas), sou feita também de palavras. Palavras que me vêm dos amigos, dos livros, da família, dos amores, da escola, do samba, do cinema, do rock, do cotidiano, do mundo. Que venham sempre muitas mais, palavras novas ou renovadas ou inventadas ou reinventadas, e por ainda muitos anos.  

Feliz aniversário pra mim!

Hendye Gracielle


domingo, 11 de novembro de 2012

Já temos idade pra morrer de amor


Não se afobe não, que nada é pra já
O amor não tem pressa, ele pode esperar
Em silêncio
(...)
Não se afobe não, que nada é pra já
Amores serão sempre amáveis
Futuros amantes, quiçá, se amarão sem saber
Com o amor que eu um dia deixei pra você
(Futuros amantes – Chico Buarque)


Estimado amigo imaginário,

Chegou-me ontem a carta sua, remetida aí das cercanias do inexistente, contando sobre as aflições sentidas pelo coração. Respondo apenas hoje, porque primeiro deixei-me impressionar pelas suas palavras de desencanto, para só depois articular ideias que pudessem alentá-lo dos desenganos da alma.

Na breve correspondência, você conta ter lido “O amor no tempo do cólera”, do Garcia Marques. Sua conclusão é de que na história não havia amor, apenas personagens resignados e possessivos. E medita se seria possível um amor irrealizado que durasse, como no livro, 51 anos, 9 meses e 4 dias, sem que nada se fizesse para matá-lo, ou para finalmente fruí-lo. Num arroubo de escapismo, você proclama que, doravante, lerá apenas os clássicos infantis, onde a felicidade é sempre inesgotável. Sente-se por fim angustiado, “com um abismo no peito onde o eco não tem fim”.

Meu amigo tão querido, sua aflição é também a minha. Tenho sentido que a angústia que o oprime não é fruto da história contada no livro, mas sim de sua própria história, de que o livro foi apenas o eco que se fez ouvir neste abismo sentimental.

Não se aflija tanto assim. Sofrer com o respaldo das artes, sobretudo as literárias, é infinitamente menos doído que sofrer desamparado de todo. A obra que reflete ou revela ou exacerba nossas angústias, as torna mais agudas, mais cortantes; entretanto, não há dúvida de que as torna também mais suportáveis. A literatura por vezes é nossa fuga, nosso escape, nosso alento. A literatura é, no mais das vezes, nossa salvação.

Quanto aos desencontros passionais, aos laços que se interrompem ainda plenos de afeto, não sou das melhores para conselhos amorosos, mas uma coisa tenho como certa: não haveremos de fugir do amor; por mais inconstante que seja, é sempre o que nos redime e nos consola das agruras dessa nossa existência.

Sua carta de certo modo alegrou-me, pois sempre conforta saber que não estamos sós em nossos conflitos e contradições. Talvez sejamos os últimos românticos do século, e já temos idade pra morrer de amor.

Abraços efusivos de sua amiga de sempre, do lado de cá da fronteira do real - o mundo dos (sobre)viventes,

Hendye Gracielle.