Penetra surdamente no reino das palavras.
Drummond
Comemoramos essa semana meu 26º
aniversário. Um quarto de século ficou definitivamente para trás, e agora me
sinto assustadoramente perto dos trinta. Nessa entressafra etária, surpreendi-me
meditando sobre a vida; não sobre grandes feitos, até porque não os há em minha
parca existência, mas sobre pequenos acontecimentos que ajudaram a fazer de mim
essa (esquisitice) que sou. Nisso acabei descobrindo que algumas simples
palavras têm lugar carinhoso nas pequenas memórias de minha vida.
Nem só de livros se constrói o
léxico sentimental de uma criatura como eu. Os amigos queridos são fonte
inesgotável de conotações, denotações e, por que não, chateações sintáticas. Já
fui xingada de culta pela Coração
Gelado, e elogiada de pedante pela
querida Pratinha. Meu amigo Johnny me falou uma vez sobre os perdigotos, e um mundo de gotículas de
salivas saltitantes se descortinou para mim. A propósito, eu sempre duvidei da
verdadeira existência da palavra perdigoto,
até o dia em que li uma citação acadêmica sobre os perdigotos de ninguém menos
que Drummond! Desde então eu passei a enxergar com mais lirismo as salivinhas brilhantes
que as crianças expelem ao assoprar a vela do bolo de aniversário. Que a
gente come depois!
No emprego de burocrata que ocupo
desde os dezenove, aprendi também umas e outras, quase sempre palavrinhas
insossas como diligência e contingência (monótonas até na rima). A
turma do trabalho é que me salva do tédio vocabular. Os colegas inventaram para
mim a classe gramatical dos diminutivos bilíngues: chamam-me Pequena Little Hendyezinha, quando, por
algum motivo inescrutável, desejam me agradar. O mais comum, entretanto, é que me
aborreçam para se divertirem, e com essa finalidade eles me atribuíram a
alcunha de Hendyslaine Stefanelle, conseguindo
superar minha própria mãe na (duvidosa) criatividade dos nomes próprios.
Mas se minha mãe não foi lá muito
feliz na escolha do prenome – digo isso aguardando a justa reprimenda materna
que virá –, na formação do meu caráter ela foi sensacional. Perdoem se me
excedo na imodéstia, mas é apenas em reconhecimento filial que digo: a educação
que mamãe me deu é irrepreensível. Mais que palavrinhas bonitas, ela me ensinou
valores, me ensinou respeito, me ensinou generosidade, e, de quebra, me ensinou
Chico, Caetano, Elis. Só não me ensinou a cozinhar, de modo que palavras como
gratinar, escumadeira, marinar, banho-maria, flambar, caçarola, são para mim
tão incompreensíveis quanto as mais herméticas concepções filosóficas pós-modernas.
Não posso me esquecer dos
vocábulos marcantes que me vieram pelos livros, repositório mágico da palavra
escrita. O Pequeno Príncipe, por exemplo, indo-se embora de um dos planetas que
visitou, ensinou-me o verbo evadir:
“aproveitou, para evadir-se, pássaros selvagens que emigravam”, é o trecho que
sei de cor. Apesar da origem pueril, mais tarde a palavra perdeu o encanto,
pois topei com ela várias vezes nas lições de Direito Penal, cujo código mais
parece um compêndio das mil e uma maneiras de um infrator se evadir, sendo o habeas corpus a menos emocionante delas.
Ainda na incipiência de minhas
incursões literárias, aprendi com Agatha Christie o verbo pigarrear e outras palavras de similar elegância. Em suas
histórias, bandido, mocinho, vilão, ninguém começa sequer uma frase sem antes
pigarrear, solenemente. Nesses romances policiais ingleses aprendi também os
mais elevados hábitos de civilidade: os assassinos matam sempre com muita
polidez, e as vítimas morrem com uma pontualidade britânica.
A vida foi se complicando, e as
leituras tornaram-se menos inofensivas, mas sempre irresistíveis. Com Drummond
a poesia entrou no meu mundo, descobri o lirismo de Minas, da melancolia e da metalinguagem, e coisas tão díspares me pareceram igualmente
deslumbrantes. Com Fernando Sabino descobri que se chamava angústia aquele sofrimentozinho que me doía a alma desde sempre.
Com Manuel Bandeira descobri que essa tal de angústia não tem cura. Com Augusto
dos Anjos, percebi que o que não tem cura é a própria vida. Mas a gente vive, e
acha bom, enquanto houver literatura (e cerveja) pra anestesiar.
Foi este o assombro dos meus vinte
e seis anos: além de carne e osso (e, vá lá, algumas células adiposas), sou
feita também de palavras. Palavras que me vêm dos amigos, dos livros, da
família, dos amores, da escola, do samba, do cinema, do rock, do cotidiano, do
mundo. Que venham sempre muitas mais, palavras novas ou renovadas ou inventadas
ou reinventadas, e por ainda muitos anos.
Feliz aniversário pra mim!
Hendye Gracielle