terça-feira, 21 de agosto de 2012

Quando o amor não acaba



O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; (...)

Uma carta que chegou depois, o amor acaba; uma carta que chegou antes, e o amor acaba; (...)

De manhã, de tarde, de noite; na floração excessiva da primavera; no abuso do verão; na dissonância do outono; no conforto do inverno; em todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba; por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba.

(Paulo Mendes Campos)


O problema é quando o amor não acaba. Viramos a página do livro, e o amor não acaba. O filme saiu de cartaz, mas o amor não acaba. Já estamos em outra estação, outro século sentimental, outra cidade invisível de Calvino, outra dimensão paralela de Borges, outra crônica de Paulo Mendes Campos. Já estamos em outra, mas o amor não acaba.

Não adiantaria queimar os livros, os filmes, os sutiãs, as bruxas, as cartas que você me deu. O amor não se queima, o amor é salamandra mágica, o amor é o próprio fogo, que arde sem se ver e sem se ouvir, porque nosso romance é invisível e nossa dor é em voz baixa. Mas nosso amor não acaba.

Sempre damos um jeitinho de continuar amando. O fim desse amor inviável, adiado infinitamente. Irresponsavelmente. Irresistivelmente. Amor que nasceu terminal, com os dias contados, marcado pra morrer. Eu era jovem de poucos anos e muitas vidas; você existia em plenitude, para muito além de mim. Prognósticos desastrosos, entretanto o amor vingou. Enraizou. Cresceu. Só não deu frutos. Esqueceu-se de envelhecer. Recusa-se peremptoriamente a morrer.

Rasgar as páginas dos livros que te dei, não vai adiantar. Mudar o número do telefone, do cartão de crédito e do mapa astral, não vai adiantar. Seu cheiro ficou na minha pele, no meu cabelo, no meu ar. Só enquanto eu respirar, vou me lembrar de você. E nosso amor está fadado à eternidade.

domingo, 12 de agosto de 2012

De perto ninguém é normal - No cinema




Paulo Mendes Campos já nos ensinou a diferença entre chatear e encher. Cá com os meus botões, eu tenho uma teoriazinha que diferencia o chato do sistemático. O chato é aquele que incomoda o outro. Chato é carrapato, o povo diz, com sua sabedoria prática e plurissignificativa. Chato é o pica-pau, o Ace Ventura, o Faustão. Já o sistemático não incomoda, mas se sente incomodado pelo outro. É o eterno personagem do Woody Allen. É o fresco. Sou eu.

Definitivamente, eu sou sistemática. Cinematograficamente sistemática. Incomodam-me coisas grandes, como celular tocando durante a projeção; coisas pequenas, como o barulho do saquinho de pipoca; coisas esdrúxulas, como gente chutando a cadeira da fila da frente; coisas normais, como tosse e espirro dentro do cinema.

Aliás, pesquisas de Harvard ou de Cambridge já devem ter descoberto os genes que controlam os neurotransmissores que produzem o pigarro (alheio) nas horas mais impróprias. Alguém vai tossir no momento em que o personagem fizer a maior revelação do filme de suspense, se declarar no romance, ou disser a frase mais nonsense no filme cult. E eu não vou ouvir. (No caso do filme cult, não faz mal, porque eu não iria entender mesmo). É sempre ao meu lado aquele barulho incômodo de gente existindo.

Também acho insuportável quando todo mundo começa a se levantar e a conversar segundos antes do término da projeção. Será que ninguém vê que eu estou tentando ler os créditos finais? No meu código de conduta em espetáculos públicos, não se deve desgrudar a bunda da cadeira até que as luzes se acendam. 

Por essas e outras, eu assinaria qualquer abaixo-assinado para projeto de lei que proibisse comida, conversa e circulação durante a projeção. Seria da maior relevância cultural, né não? Entrou no cinema, está proibido de emitir ruídos de qualquer espécie. Exceto nas comédias, que só são engraçadas no cinema, justamente porque a risada é contagiante. Nos demais filmes, deve-se proceder com quietude reverencial.

Imagina se alguém conversa na hora do “Rosebud”, do “I see dead people”, do “We’ll always have Paris” ou do “Dadinho é o caralho, meu nome agora é Zé Pequeno”? Imagina se alguém atravessa na minha frente na hora do iceberg, nunca mais eu iria entender como Deus afundou o Titanic...

Hendye Gracielle

Hitchcock é dos meus!


***

Se você ainda não sabe a diferença entre chatear e encher, é só conferir a crônica do Paulo Mendes Campos no volume dois da coleção Para Gostar de Ler. Mas se você não sabe o que é Para Gostar de Ler, ou você não teve infância ou ela aconteceu depois dos anos oitenta. Em ambas as hipóteses, você não tem salvação.

domingo, 5 de agosto de 2012

Eu tive um futuro promissor




Trabalho em empresa estatal, pra não morrer de fome, e escrevo crônicas, pra não morrer de solidão.

A indecisão vocacional faz parte do meu curriculum vitae – trajetória de vida – desde minha pré-história, embora a consciência disso seja menos longínqua.

Folheando antigos cadernos, redescubro antigos sonhos de criança. Evidentemente estapafúrdios. Como o de ser pintora (de quadros impossíveis), escritora (de bula de remédios), até mesmo costureira (de trajes invisíveis), e, pasmem, advogada (de filme americano - mas já descobri que os tribunais cinematográficos superam com folga nossa insossa realidade forense).   

Houve um breve período em que quis ser webmaster. Aprendi sozinha a programar em linguagem HTML, e fiz dois ou três sites medianos, que ainda hoje navegam à deriva na rede mundial. Empolgada com a informática, frequentei até curso de montagem e manutenção de microcomputadores. O entusiasmo durou até o dia em que meus tímidos conhecimentos tornaram-se obsoletos. Foi bastante rápido, e é claro que não tive ânimo para acompanhar o frenesi da evolução cibernética. Eu ainda não sabia, mas já tinha em Macunaíma meu anti-herói inspirador: “Ai, que preguiça”.

De um extremo a outro, escrevi alguns poemas na adolescência, mas depois de um tempo julguei a temática pueril e a forma pouco revolucionária. Abandonei-os com afinco, e apenas minha avó sente falta daqueles rabiscos.

Cresci, quis ser jornalista, e fui cursar Comunicação Social na UFMG. O curso disponibilizava quatro modalidades de graduação, o que me fez mudar de opinião a cada quarenta e cinco dias. Entrei como jornalista, cogitei “relações públicas”, interessei-me por “rádio/TV”, mas seduziu-me a publicidade. Sendo esta última incompatível com meus ideais libertários, voltei para o jornalismo, definitivamente. Minha aventura acadêmica na metrópole durou até o final do semestre, quando tranquei a faculdade e voltei pra terra do pequi.

O motivo do meu retorno eu nunca soube com clareza, e a cada pessoa que me interpelava eu respondia algo diferente, pensado na hora e esquecido em seguida. Tudo verdade. Certamente houve várias motivações, algumas inconfessáveis. A saudade da família contribuiu, mas só a um amigo imaginário ousaria segredar tal fraqueza sentimental. Às vezes me convenço de que o motivo mais decisivo foi ouvir tantas pessoas dizerem que o jornalista tem a grande responsabilidade de entender de todos os assuntos. Meu fraco ânimo assustou-se com a perspectiva aterradora de saber de tudo um pouco, e escorei-me em Sócrates para elegantemente declinar da responsabilidade: “tudo que sei é que nada sei”. Argumento filosófico irrefutável, e foi o fim de (mais) um sonho.

Abandonado o jornalismo, voltei para cursar Direito na Unimontes. Nos dias úteis eu freqüentava as aulas; nos inúteis, elucubrava profissões que pudessem me resgatar daquele abismo jurídico em que voluntariamente me precipitei. Por razões felizmente esquecidas, pensei em estudar letras, psicologia, psicanálise, sociologia, biblioteconomia, as infinitas variações de engenharia, filosofia, ufologia e zen-budismo. Pensei até em fazer cinema, influenciada pelo Cinema Novo e pela resposta de Joaquim Pedro de Andrade à pergunta “por que você faz cinema?”:

“(...) para que conhecidos e desconhecidos se deliciem / para que os justos e os bons ganhem dinheiro, sobretudo eu mesmo / porque de outro jeito a vida não vale a pena (...)”.

Algo que fizesse minha vida valer a pena, era o que eu procurava. Em vão. É lamentável que não exista um Google para buscas existenciais; para isso temos apenas o divã do analista, que ainda não experimentei, com medo de me viciar. Nesse meio tempo, terminei a faculdade, e o caminho mais óbvio que se me apresentava era o dos concursos públicos de nível superior.

Sempre que penso em prestar novos concursos, sinto uma dor aguda um pouco abaixo da costela direita, que interpreto como prenúncio de tédio, mas acho que pode ser também sintoma de preguiça.

A única carreira jurídica que fez meus olhos brilharem foi a de diplomata, seguramente a menos entediante. Mas para ingressar na diplomacia, devem-se falar três línguas estrangeiras, obstáculo por ora intransponível: no meu inglês “the book is (still) on the table”. De outro lado, je ne parle pas le français, embora tome lições semanais do idioma, o que até agora só me ajudou a pronunciar o nome dos meus cineastas preferidos. E em espanhol sei apenas dois palavrões decorados dos filmes de Almodóvar. Menos cosmopolita do que eu gostaria, só domino mesmo a língua de Camões, ainda assim em parcos vocábulos. Como resultado, a diplomacia acabou virando objetivo de longo prazo, talvez daqui a duas encarnações.

Periodicamente volto a sentir uma inquietante vontade de fazer tudo. Às vezes basta esperar a vontade passar, às vezes não. Há um ditado preconceituoso segundo o qual “quem sabe, faz; quem não sabe, ensina”. Vai ver ao menos a mim ele se aplica, porque tenho freqüentado aulas de pós-graduação em docência, que me habilitarão a lecionar no ensino superior. Só pra completar a mixórdia. (Permito-me abrir um parêntese para dizer que, nem sempre, quem sabe mais, melhor ensina. A boa docência requer generosidade, paciência e didática, atributos  que não se confundem com o conhecimento, embora possam andar juntos – menos nas ciências jurídicas).

No fim de semana passado, minha tia Luciana, que trabalha na área da educação, ofereceu a minha prima vestibulanda um teste vocacional. Intrometi-me na conversa com meu tradicional entusiasmo (graficamente representado pela expressão “uh”):

“- Uh, Tia Lu, eu também quero o teste, pra ver se descubro o que fazer da vida!
- Uai, Grá, talvez você já até esteja no caminho certo.
- É, eu estou no caminho certo, só preciso achar a placa de retorno!”

Seguindo pelo atalho das incertezas, o maior risco que corro é o de ter como epitáfio aquela desencantada máxima anônima: “eu tive um futuro promissor”. Ou aquele poema de Leminski, variação menos lacônica do mesmo tema: “aqui jaz um grande poeta / nada deixou escrito / este silêncio, acredito / são suas obras completas”.

Ainda hoje poder-se-ia perguntar o que vou ser quando crescer. Não tenho a resposta, talvez nem chegue a compreender o alcance da pergunta. Nada sei de interrogações ou exclamações pragmáticas - os meus vinte e poucos anos têm sido pontuados por promissoras reticências...