Ao ensejo de minha mudança de emprego, uma cronicazinha que achei esquecida na gaveta...
Causos verídicos do
milenar ofício de cobrador
- Ou: “jeitinho homo sapiens de ser”
“O aumento da inadimplência da Caixa Econômica Federal no primeiro
trimestre deste ano já é um reflexo das dificuldades que o banco estatal
enfrentará até o primeiro semestre de 2015”. (Folha de S. Paulo, 22 de maio de
2014)
“A Caixa Econômica Federal prevê queda em seu índice de inadimplência
neste segundo trimestre (...)”. (Agência Reuters de Notícia, 22 de
maio de 2014 – mesmo dia)
Dizem ser o meretrício a
profissão mais antiga do mundo, do que eu modestamente discordo. Antes de se
cuidar das aflições da carne, o mais provável é que se tenham cuidado das
aflições do bolso, mesmo naquela época em que estes não existiam, por andarmos
nus. Do mais remoto episódio registrado nos anais da história humana, diz-se
que a serpente ofereceu a maçã àquela notória estreante do gênero feminino, mas
omite-se o fato de que essa mesma serpente era, além de víbora mexeriqueira,
uma contumaz devedora nas transações comerciais que se operavam no Paraíso. Há
fartas provas, embora apócrifas, de que dona Serpente tinha por hábito dar
calote no vendedor de maçãs, além de manter-se inadimplente quanto à maior
parte dos serviços essenciais prestados no Jardim Sagrado – gás encanado, telefone,
água, fiat lux. Se até os répteis eram
notórios devedores no Éden, o mais provável é haver por lá também os
respectivos cobradores, a lhes oferecerem diariamente paradisíacas propostas de
negociação.
De outra parte, mais
científica e menos sacrossanta, renomados centros de pesquisa arqueológica de
Harvard e Cambridge apresentaram evidências de que na pré-história a atividade
de cobrador já era largamente exercida, consoante comprovam pinturas rupestres
nas quais constam imagens de indivíduos de dedo indicador em riste, supostamente
negando a existência da dívida a eles imputada. Os pesquisadores descobriram,
ainda, uma bem conservada pintura de um animal silvestre sendo repartido em sessenta
pedaços iguais, com juros de 1% a.m., o que vem sendo considerado o primeiro
parcelamento de que se tem notícia na história da espécie humana. Certo é que,
neste ofício milenar e ao mesmo tempo contemporâneo de cobrar dívidas que aqui
se fazem e não se pagam, atuam dois tipos básicos de seres, ambos
interessantíssimos: de um lado o distinto senhor cobrador; de outro lado, o
(não menos distinto) senhor devedor. Vamos a eles.
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A bat-equipe do bat-local
onde trabalho dá boas mostras do que vem a ser essa diversidade de tipos, já
que a principal atividade do setor é o combate à inadimplência, cobrando dívidas
de todo o estado de Minas Gerais. Pra começar,
contamos com dois negociadores nordestinos: Ceará e Paraíba. Com tanto cabra
arretado, de vez em quando a negociação vira um “risca‑faca” que sobra até pra
quem já é “defunto morto”, como se diz por aí. Certo cliente, ao ser cobrado, argumentou
que o seu pai, titular da dívida, já não estava entre os vivos:
- “Mas papai já faleceu”.
Ao que Ceará imediatamente
rebateu:
- “Pois vamos resolver
logo a situação porque senão pode dar problema pra ele!”.
Problema maior do que já
ter morrido? Só se for pendência no SPC do além! Eu, ein!
Se os negociadores são do
tipo “risca-faca”, as negociadoras são do tipo “top‑model”. Encantadoras na
arte de negociar, o inadimplente não apenas quita a dívida como fica fã da
cobradora. Uma colega, que atende pelo codinome de Gisele Bündchen, vive recebendo
elogio dos clientes, e há suspeita de que alguns até se tornam reincidentes, para
receberem novamente sua ligação. Uns pagam sem pestanejar, outros oferecem
alguma resistência, logo vencida. Um deles insistiu para que ela abaixasse um pouquinho mais, mas a
resposta foi categórica: “eu só posso abaixar
dentro das regras, meu senhor!”. É claro que eles estavam se referido ao valor
da cobrança... Com tanta simpatia, das senhoras inadimplentes Gisele vira amiga
de infância em dois minutos. Dos senhores devedores, já recebeu algumas
propostas de casamento, mas recusou todas, porque maus pagadores não fazem seu
tipo. Na verdade, ela está à espera do cliente encantado que a leve pra Dubai,
com tudo pago (à vista e sem desconto, evidentemente!).
Também entre os clientes
encontram-se os mais variados tipos, do “advogado-embromeixon” ao “rebelde‑sem‑causa”,
passando pelo já clássico “não-devo-não-devo-não-devo-mas-cê-parcela-pra-mim?”.
E aparece sempre o cliente “Datena”, paladino da moral a esbravejar
impropérios:
- “Não devo nada! É um
absurdo! Chama as autoridades!”.
De vez em quando topamos
com o tipo “surdo de conveniência”:
“- Alô! Bom dia! É o José
da Silva?”
“- Bom dia, sou eu sim!”
“- Tudo bem? Estamos
ligando pra negociar uma dívida.”
“- Ein?”
“- Negociar uma dívida!”
“- Alô, alô... não tô
ouvindo nada!”.
Já apareceu até cliente
com crise de personalidade:
“- Alô! É dona Maria?”,
“- Sim. Sou eu”,
“- Tudo bem, dona Maria? Estou
te ligando pra negociar uma dívida”,
“- Você quer falar com
quem?”
“- Com a senhora mesmo. A
senhora não é a Dona Maria?”,
“- Não. Nunca ouvi falar
dessa pessoa!”.
Sem contar os mortos-vivos:
“-Aqui é do setor de
cobrança, gostaria de falar com o sr. Raimundo”,
“-Tô acabando de voltar do
enterro dele”.
Ligamos de novo dias
depois, e foi o próprio Raimundo que atendeu. (Depois dessa, estamos cogitamos entrar
para o ramo da cobrança mediúnica).
Alguns devedores fazem de tudo
e mais um tiquinho pra se esquivar do pagamento da dívida. Mas a inventividade
dos cobradores não fica pra trás; fazem um tiquinho e mais um tudo pra receber.
Argumentos sensacionais não faltam para ambos os lados – deve ser o que o povo
chama de “jeitinho brasileiro”, mas eu chamo de “jeitinho homo sapiens de ser”. Se criatividade pagasse conta, a
inadimplência desta espécie já estaria abaixo de zero...
Hendye
Gracielle