sábado, 27 de julho de 2013

Crônica de Viagem: Paraty é uma festa!

(Desenhos surrupiados de Troche)

A gente conhece os vícios de uma pessoa pela sua maneira de se comunicar com Deus. Já contei em crônica anterior o efeito do tempo em que fui quase uma workaholic, e me surpreendi fazendo uma oração burocrática, neste estilo: “Prezado Deus, favor proteger toda a minha família. Gentileza relevar as falhas, que serão oportunamente retificadas. Certa de sua compreensão, desde já agradeço, amém”.

Na viagem que fizemos neste mês a Paraty, eu e meus amigos percorremos mais de dois mil quilômetros de carro, revezando-nos na direção. Saí de Montes Claros dirigindo, e na primeira parada foi a vez do Macho Jurubeba (que vocês já conhecem de linhas passadas) assumir o volante. Antes de dar a partida, não ficamos surpresos ao vê-lo fazer o sinal da cruz, mas não esperávamos pela concisa oração que ouvimos em seguida: “#PartiuComDeus”! Isto mesmo, com todas as letras e caracteres: “hashtag-partiu-com-Deus”! Quanta modernidade para um Macho outrora Jurubeba de raiz! Descobrimos então que nosso amigo tornara-se um adicto das redes sociais. As gargalhadas inundaram o carro, mas na hora me veio uma dúvida, que não verbalizei para não ser também alvo das veementes chacotas dos amigos: será que Deus curtiu?

Chegando a Paraty, pegamos uma estrada vicinal que levava à Vila de Corisco, onde nos hospedamos. Após transpor 5 km e 27 quebra-molas – alguém se deu ao trabalho de contá‑los – chegamos à Pousada, que logo apelidamos de “Casa da Bruxa”, em decorrência de seu aspecto ecológico-esotérico-filme de terror. Passamos pela recepção e a mocinha nos explicou que a entrada para nosso chalé era pela rodovia mesmo; a trilha interna estava intransitável, porque não dera tempo de limpá-la (fizemos reserva com três meses de antecedência, mas achamos melhor não abordar este detalhe). Perguntamos então qual era a chave para abrir a garagem, ao que a recepcionista respondeu: “Ah, é só meter a mão e abrir”. Opa, agora sim nós nos sentimos efetivamente no estado do Rio de Janeiro, né não, malandragem?

Metemos a mão no portão, estacionamos, entramos no chalé, e logo ao chegar observamos várias velas sobre a mesa, prontas para o uso. Primeiro achamos que se tratava dos preparativos para algum ritual macabro; mais tarde a energia começou a oscilar, e entendemos que as velas estavam ali para serem a nossa luz, caso a elétrica faltasse. Felizmente nada disso aconteceu – nem a falta de energia, nem o ritual macabro -, e as velas permaneceram intocadas, prontas para assustar as próximas vítimas, digo, os próximos hóspedes incautos.

Considerando que um de nós ainda não conhecia o mar, programamos um passeio de barco para o dia seguinte. A bordo da escuna, passamos a tarde toda só na alegria: cerveja gelada, comida gostosa, música ao vivo, ilhas paradisíacas (todas particulares, que pudemos ver, mas não tocar!), mergulho em alto mar. “Mas essa água é muito salgada!”, exclamou o meu amigo para quem o oceano era inédito! Mas tudo – inclusive a inocência – tem um preço! No final da tarde chega a conta para pagarmos, e cada um de nós saca confiante o seu cartão de crédito, milagrosa máquina do tempo que transforma as dívidas de amanhã nas delícias de hoje! Mas há dias em que o milagre falha: descobrimos que o barco não aceitava cartão. Na empolgação etílica em que nos encontrávamos, tentamos resolver discretamente a questão: um gritou que tinha trazido onze reais e cinquenta centavos, a outra disse que ia contar as moedinhas da bolsa, a terceira se ofereceu para lavar os pratos, soluções bastante criativas para se pagar uma conta de três dígitos! As coisas se resolveram quando voltamos ao cais, e propusemos ir ao banco sacar dinheiro, o que a dona do barco só aceitou caso um dos tripulantes nos acompanhasse até lá. Porque “a gente confia, mas não custa prevenir”. Concordamos inteiramente, com carinha de pessoas honestas (que somos) preocupadas com as vigarices que assolam o país.

Para superar a pecha de golpistas acidentais, vestimos a carapuça de “meio intelectuais meio de esquerda” e fomos para a FLIP – Festa Literária Internacional de Paraty (nossa amiga Coração Gelado diria que fomos “fingir cultura”, mas isso seria pura inveja por ela não estar lá). As Festas Literárias são lugares interessantes porque propiciam que estejamos todos ocupando os mesmos espaços e celebrando em comunhão: nós, apaixonados por literatura; os autores de sucesso, como Ferreira Gullar, Xico Sá, Nicolas Behr e outros que perambularam por lá; e artistas anônimos, que ficam pelas ruas tocando seus instrumentos, vendendo seus livretos, declamando poemas e cantando, respeitosamente, as mulheres. Numa madrugada improvisamos um sarau na praça – na verdade foi uma algazarra de vinhos bebidos no gargalo e poemas declamados pelas metades, mas vamos chamar de sarau, que é pra elevar o espírito. Não sei se atraídos pelo lirismo dos versos ou pela euforia do álcool, alguns poetas vieram ter conosco. Educada que é, nossa camarada Madê foi delicadamente cumprimentar um deles, “Muito prazer”, ao que ele respondeu, “prazer ainda não tivemos, meu bem”. Ênfase no “ainda”, tratava-se de um poeta esperançoso. Outro deles, inquirido sobre suas atividades habituais, declarou que escrevia poemas, ilustrava livros e fazia filhos; deve ter sido bastante frustrante que nenhuma de nós tenha se interessado em experimentar as habilidades que ele, com tanta convicção, afirmava ter.

Mas nem só de esculhambação se faz uma viagem literária. Houve também momentos de tietagem erudita em nossas aventuras. Conseguimos autógrafos do Milton Hatoum (mediante promessas de favores sexuais para uma das recepcionistas) e nosso amigo viciado em internet tirou foto e fez check-in na Adriana Calcanhotto – virtualmente falando, é claro! A única tristeza que guardo é a de que os nossos planos infalíveis de levar a Maria Bethânia ou o Xico Sá para um jantarzinho em nosso chalé tenham falhado. É pena, mas fica como expectativa para uma próxima edição da FLIP. Nossos delírios não conhecem o limite do improvável: Paraty é uma festa sem fim!

Hendye Gracielle

(A FLIP é uma loucura!)

***
Leia também a outra parte –  em outro estilo – de minhas aventuras de julho: “Viagem a São Paulo – relato épico de nossos poucos dias”.

A expressão “Meio intelectual meio de esquerda” está na crônica “Bar ruim é lindo, bicho”, do Antônio Prata, o cronista de nossa geração. Leia na pág. 30 do livro homônimo, ou então aqui: http://blogs.estadao.com.br/antonio-prata/bar-ruim-e-lindo-bicho-1/ . 

Abraços efusivos aos meus leitores invisíveis!

terça-feira, 23 de julho de 2013

Viagem a São Paulo – relato épico de nossos poucos dias



Ai de ti, Copacabana, porque eu já fiz o sinal bem claro de que é chegada a véspera de teu dia, e tu não viste. (...)

Assim qual escuro alfanje a nadadeira dos imensos cações passará ao lado de tuas antenas de televisão; porém muitos peixes morrerão por se banharem no uísque falsificado de teus bares. (...)

Canta a tua última canção, Copacabana!

(Rubem Braga – crônica Ai de ti, Copacabana)

(Fotografia de Bruno Lima)

Ai de mim, que não conheço Copacabana. E fui encontrar Rubem Braga em São Paulo – cidade antípoda de seu lirismo crônico –, pelo acaso de um passeio literário, escondido no Museu da Língua Portuguesa, em exposição que forrou de jornais antigos o primeiro andar do prédio moderno, e forrou de acalantos novos o primeiro vão de meu antiquado coração.

E deixei de conhecer o sol e o mar do Rio de Janeiro, e troquei-o pela oportunidade de banhar-me na garoa cinzenta de pecados e prestígios da cidade de São Paulo; e mesmo tomando o caminho contrário de seu habitat, acabei encontrando o cronista, e revi-o em vídeos, fotografias, livros e sonhos. 

E mesmo tendo partido para tão longe, ainda assim não pude fugir de mim mesma. E afastando-me mil quilômetros de meu cotidiano norte-mineiro, acabei por voltar a Montes Claros, numa crônica do velho Braga, por acaso folheada nos livros em exposição. E esta crônica citava também Cachoeiro do Itapemirim, terra natal do escritor. E emocionei-me de que estivéssemos ali todos juntos, eu, minha cidade, o cronista, sua cidade, e São Paulo, que foi o porto agregador dos rios de concreto desta viagem sentimental.

E saindo do prédio, e voltando à rua, e deslumbrada pela altivez da Estação da Luz, e querendo atravessá-la de ponta a ponta, entrei pela porta da opulência, defronte ao castelo encantado da Pinacoteca do Estado, e saí inadvertidamente pela porta da decadência; e, não sei se por distração ou por ingenuidade, não reconheci que havia ali mulheres de vida amarga e corpos postos em liquidação. Ai de mim, que nada conheço desta vida.

E indiferente às agruras desses habitantes submersos em fumaça, confortei‑me na companhia de pessoas queridas de minha vida, e vagamos pelas ruas do centro da cidade, em noite quase deserta, fascinados pelas construções dos primeiros séculos de sua existência; e sambamos pelos bares e botequins da Vila Madalena, em cuja boemia mergulhamos intrepidamente; e nos perdemos pelas avenidas labirínticas e viadutos medonhos; e perambulamos pelas vias subterrâneas de trilhos e estações, por prestigiados museus e livrarias da Avenida Paulista, pela metrópole hipnotizante, com seus edifícios que tocam o céu e seus miseráveis ao rés-do-chão.

Ai de ti, cidade de São Paulo, cosmópole deslumbrante de infortúnios e iniquidades e contradições; e ai de mim, porque me fascinas e me comoves ao infinito.

Hendye Gracielle
(Desenho de Gevasio Troche)
PS.: Na próxima semana, "Viagem a Paraty - relato lúdico de nossos poucos dias".