sábado, 4 de janeiro de 2014

Reflexões de ano novo: A vida tem mais fases que o jogo do Mário Bros


“Aos 20 anos, eu sabia latim, mas não sabia tomar um bonde.”
(Carlos Heitor Cony)


Você percebe que está se tornando verdadeiramente uma dona-de-casa quando as suas resoluções de ano novo começam a ficar diferentes. Nada de “economizar para a viagem dos meus sonhos”, “estudar para o concurso da Receita Federal”, “fazer matrícula na academia”. Neste ano novo eu me flagrei fazendo planos assim: “não deixar acumular louça suja por mais de uma semana”; “limpar o banheiro antes de começar a feder”; “fazer as compras da semana pelo menos uma vez ao mês”; “tirar o lixo ao primeiro sinal de seres vivos dentro dele”.

Quando a pessoa sai da casa dos pais e vai morar sozinha, ela usa seu senso comum pré‑adquirido em novelas da TV, comédias românticas do cinema, blogs da internet e gibis da Turma da Mônica, medita dois minutos sobre o assunto e acha que está preparada para assumir sozinha todas as responsabilidades de uma casa e da própria vida. Todo mundo conhece esta matemática: das vinte e quatro horas do dia, eu trabalho oito, durmo oito, sobram mais oito horas para o resto. Isso é mais que suficiente pra cuidar da arrumação da casa, da higiene pessoal e ainda sobrar umas horinhas, no fim de semana, para o lazer. Pronto, a pessoa se acha preparada para a lide doméstica, arruma sua trouxa e – trouxa! – vai saltitante enfrentar o mundo.

Não nego que morar longe dos cuidados da mamãe seja ótimo para o amadurecimento pessoal, o fortalecimento do caráter, o crescimento do espírito. Principalmente se a mamãe continua disponível pra te receber de vez em quando, te fazer uns afagos e uma marmitinha quente pra você comer no almoço. Sendo assim, nada de arrependimentos. Mas isto é inegável: ao sair de casa, ninguém está totalmente ciente do que a vida nova lhe reserva.

E os desafios vão sendo surpreendentes. Você sabe que tem de tirar o lixo regularmente, mas só quando começam a aparecer umas minhoquinhas brancas do lado de fora do saco plástico é que você percebe que precisa lavar a lixeira de vez em quando. Você sabe que tem de fazer limpezas periódicas nos cômodos, mas não se lembra da sua mãe tendo de expulsar todo dia os insetos que entram na sua casa toda noite, sabe-se lá por onde. Você nunca havia se dado conta de que sujava tanta roupa, de que o gás acabava tão rápido, de que as vasilhas de plástico que você tem nunca cabem no espaço reservado a elas. Você não fazia ideia de que precisava descongelar o freezer de vez em quando, afinal nunca viu num filme o mocinho tentando abrir a porta presa pelo gelo, ou a mocinha limpando as grades da geladeira. E, acima de tudo, você se sente só: não tem outra pessoa pra lidar com o síndico, o encanador, o eletricista, a moça do censo, o vendedor de enciclopédias e o cachorro do vizinho. Agora é com você!

Você enfrenta isso tudo e vai se tornando mais confiante. Depois de três anos e meio, vai até gostando. Mesmo assim, tomei um susto quando me dei conta de que as necessidades domésticas invadiram meus planos de ano novo. Aprender a me virar sozinha foi importante, mas sempre me bate um medinho de ser dona-de-casa até demais. Acho que gostava de ser do tipo “pseudo-intelectual-pedante-displicente” do que “dona-de-casa-ex-desleixada-quase-exemplar”. Talvez seja só uma fase, dentre tantas que foram e que virão (a vida tem mais fases que o jogo do Mário no SuperNintendo). Hoje, quando passo por algum shopping center, o que mais ocupa o meu tempo e leva meu dinheiro ainda são as livrarias. Mas – perigo! – as lojas da Tok & Stok já estão em segundo lugar...

 
(Ilustração: Gervasio Troche)


***
Posfácio absolutamente inútil:

Ela: “Que delícia, adorei a crônica! Mas deixa eu te dar uma dica, só pra atualizar.”
Eu: “É sobre o vendedor de enciclopédias”?
Ela: “Não. É que as fases do Mário são extremamente limitadas se você já jogou AQW.”
Eu: “Hein?”
Ela: “Esse é um jogo que meus meninos jogam. Não acaba. Simplesmente.”
Eu: “Ah, mas não é o jogo que EU joguei”.
Ela: “É mesmo! Óbvio que quem tá na fase de dona de casa se lembra é do Super Mário mesmo!”
Eu: “Mas eu não poderia dizer que a vida tem mais fases que o AQW...”
Ela: “Por quê?”
Eu: “Porque a vida acaba!”
Ela: “Credo. Até numa crônica tão fofa você consegue vir falando, ainda que nas entrelinhas, sobre a efemeridade da vida!!!”
Eu: “O.o”