segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Feliz aniversário pra mim! (ou A Origem das Palavras)


Penetra surdamente no reino das palavras. 
Drummond


Comemoramos essa semana meu 26º aniversário. Um quarto de século ficou definitivamente para trás, e agora me sinto assustadoramente perto dos trinta. Nessa entressafra etária, surpreendi-me meditando sobre a vida; não sobre grandes feitos, até porque não os há em minha parca existência, mas sobre pequenos acontecimentos que ajudaram a fazer de mim essa (esquisitice) que sou. Nisso acabei descobrindo que algumas simples palavras têm lugar carinhoso nas pequenas memórias de minha vida. 

Nem só de livros se constrói o léxico sentimental de uma criatura como eu. Os amigos queridos são fonte inesgotável de conotações, denotações e, por que não, chateações sintáticas. Já fui xingada de culta pela Coração Gelado, e elogiada de pedante pela querida Pratinha. Meu amigo Johnny me falou uma vez sobre os perdigotos, e um mundo de gotículas de salivas saltitantes se descortinou para mim. A propósito, eu sempre duvidei da verdadeira existência da palavra perdigoto, até o dia em que li uma citação acadêmica sobre os perdigotos de ninguém menos que Drummond! Desde então eu passei a enxergar com mais lirismo as salivinhas brilhantes que as crianças expelem ao assoprar a vela do bolo de aniversário. Que a gente come depois!

No emprego de burocrata que ocupo desde os dezenove, aprendi também umas e outras, quase sempre palavrinhas insossas como diligência e contingência (monótonas até na rima). A turma do trabalho é que me salva do tédio vocabular. Os colegas inventaram para mim a classe gramatical dos diminutivos bilíngues: chamam-me Pequena Little Hendyezinha, quando, por algum motivo inescrutável, desejam me agradar. O mais comum, entretanto, é que me aborreçam para se divertirem, e com essa finalidade eles me atribuíram a alcunha de Hendyslaine Stefanelle, conseguindo superar minha própria mãe na (duvidosa) criatividade dos nomes próprios.  

Mas se minha mãe não foi lá muito feliz na escolha do prenome – digo isso aguardando a justa reprimenda materna que virá –, na formação do meu caráter ela foi sensacional. Perdoem se me excedo na imodéstia, mas é apenas em reconhecimento filial que digo: a educação que mamãe me deu é irrepreensível. Mais que palavrinhas bonitas, ela me ensinou valores, me ensinou respeito, me ensinou generosidade, e, de quebra, me ensinou Chico, Caetano, Elis. Só não me ensinou a cozinhar, de modo que palavras como gratinar, escumadeira, marinar, banho-maria, flambar, caçarola, são para mim tão incompreensíveis quanto as mais herméticas concepções filosóficas pós-modernas.



Não posso me esquecer dos vocábulos marcantes que me vieram pelos livros, repositório mágico da palavra escrita. O Pequeno Príncipe, por exemplo, indo-se embora de um dos planetas que visitou, ensinou-me o verbo evadir: “aproveitou, para evadir-se, pássaros selvagens que emigravam”, é o trecho que sei de cor. Apesar da origem pueril, mais tarde a palavra perdeu o encanto, pois topei com ela várias vezes nas lições de Direito Penal, cujo código mais parece um compêndio das mil e uma maneiras de um infrator se evadir, sendo o habeas corpus a menos emocionante delas.

Ainda na incipiência de minhas incursões literárias, aprendi com Agatha Christie o verbo pigarrear e outras palavras de similar elegância. Em suas histórias, bandido, mocinho, vilão, ninguém começa sequer uma frase sem antes pigarrear, solenemente. Nesses romances policiais ingleses aprendi também os mais elevados hábitos de civilidade: os assassinos matam sempre com muita polidez, e as vítimas morrem com uma pontualidade britânica.

A vida foi se complicando, e as leituras tornaram-se menos inofensivas, mas sempre irresistíveis. Com Drummond a poesia entrou no meu mundo, descobri o lirismo de Minas, da melancolia e da metalinguagem, e coisas tão díspares me pareceram igualmente deslumbrantes. Com Fernando Sabino descobri que se chamava angústia aquele sofrimentozinho que me doía a alma desde sempre. Com Manuel Bandeira descobri que essa tal de angústia não tem cura. Com Augusto dos Anjos, percebi que o que não tem cura é a própria vida. Mas a gente vive, e acha bom, enquanto houver literatura (e cerveja) pra anestesiar.

Foi este o assombro dos meus vinte e seis anos: além de carne e osso (e, vá lá, algumas células adiposas), sou feita também de palavras. Palavras que me vêm dos amigos, dos livros, da família, dos amores, da escola, do samba, do cinema, do rock, do cotidiano, do mundo. Que venham sempre muitas mais, palavras novas ou renovadas ou inventadas ou reinventadas, e por ainda muitos anos.  

Feliz aniversário pra mim!

Hendye Gracielle


domingo, 11 de novembro de 2012

Já temos idade pra morrer de amor


Não se afobe não, que nada é pra já
O amor não tem pressa, ele pode esperar
Em silêncio
(...)
Não se afobe não, que nada é pra já
Amores serão sempre amáveis
Futuros amantes, quiçá, se amarão sem saber
Com o amor que eu um dia deixei pra você
(Futuros amantes – Chico Buarque)


Estimado amigo imaginário,

Chegou-me ontem a carta sua, remetida aí das cercanias do inexistente, contando sobre as aflições sentidas pelo coração. Respondo apenas hoje, porque primeiro deixei-me impressionar pelas suas palavras de desencanto, para só depois articular ideias que pudessem alentá-lo dos desenganos da alma.

Na breve correspondência, você conta ter lido “O amor no tempo do cólera”, do Garcia Marques. Sua conclusão é de que na história não havia amor, apenas personagens resignados e possessivos. E medita se seria possível um amor irrealizado que durasse, como no livro, 51 anos, 9 meses e 4 dias, sem que nada se fizesse para matá-lo, ou para finalmente fruí-lo. Num arroubo de escapismo, você proclama que, doravante, lerá apenas os clássicos infantis, onde a felicidade é sempre inesgotável. Sente-se por fim angustiado, “com um abismo no peito onde o eco não tem fim”.

Meu amigo tão querido, sua aflição é também a minha. Tenho sentido que a angústia que o oprime não é fruto da história contada no livro, mas sim de sua própria história, de que o livro foi apenas o eco que se fez ouvir neste abismo sentimental.

Não se aflija tanto assim. Sofrer com o respaldo das artes, sobretudo as literárias, é infinitamente menos doído que sofrer desamparado de todo. A obra que reflete ou revela ou exacerba nossas angústias, as torna mais agudas, mais cortantes; entretanto, não há dúvida de que as torna também mais suportáveis. A literatura por vezes é nossa fuga, nosso escape, nosso alento. A literatura é, no mais das vezes, nossa salvação.

Quanto aos desencontros passionais, aos laços que se interrompem ainda plenos de afeto, não sou das melhores para conselhos amorosos, mas uma coisa tenho como certa: não haveremos de fugir do amor; por mais inconstante que seja, é sempre o que nos redime e nos consola das agruras dessa nossa existência.

Sua carta de certo modo alegrou-me, pois sempre conforta saber que não estamos sós em nossos conflitos e contradições. Talvez sejamos os últimos românticos do século, e já temos idade pra morrer de amor.

Abraços efusivos de sua amiga de sempre, do lado de cá da fronteira do real - o mundo dos (sobre)viventes,

Hendye Gracielle.

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Histórias da carochinha: amigos em Diamantina




Hoje vou falar dos meus amigos. De três, em especial, com quem viajei para Diamantina semana passada. O “Macho Jurubeba”, o “Cara Leve” e a “Coração Gelado”. Não será necessário descrevê-los por perfis psicológicos, características físicas, feições morais. A apresentação será episódica, e logo se lhes conhecerá a alma. Vamos a eles.

O Macho Jurubeba é macho de raiz. Não tem as grosserias do macho alfa, mas não está sob suspeita como o macho metrossexual (embora desconfiemos que ele faz a sobrancelha, mas apenas pra aliviar o peso das pestanas). Ele é fino, mas nem sempre delicado. Ele é engomadinho e limpinho, mas se for preciso anda descalço e come com a mão. Ele é um cavalheiro, mas divide a conta do restaurante, por questão de isonomia constitucional. Ele me censura por usar sacolas plásticas, e pela janela só joga lixo orgânico, que é pra adubar a mãe natureza (embora eu já o tenha explicado que no asfalto nada germina). Ele liga para os pais ao sair e ao chegar. Ele tem um jurubeba móvel, que nos levou até Diamantina. Ele dirige dentro dos limites de velocidade, porque é cioso de nossa segurança. Por isso é que, no primeiro dia, só vimos de Diamantina o sol vespertino, conquanto tenhamos acordado cedo para a viagem. O Macho Jurubeba não se excede em público, porque acha que tem uma reputação a zelar.

Quase um antípoda do Macho Jurubeba, temos a querida Coração Gelado, com quem dividi o quarto do hotel. Nem bem fechamos a porta, ela já espalhou seus pertences pelas três camas disponíveis, zombando da minha necessidade de organização, com seu peculiar: “ah, você é trouxa!”. Com ela no quarto, tive de dormir com o barulho da TV e acordar com o barulho do celular – na sonolência pensei que tinha sido abduzida por uma discoteca voadora não identificada, mas depois descobri que era só o despertador. Nisso tudo, ela nem se abalou, e só depois que eu carinhosamente arremessei o aparelho na sua direção é que Coração Gelado acordou, e ainda me desejou “bom dia!”. “Bom dia pra quem?”, foi a minha resposta mental, entre outros pensamentos impublicáveis.

Coração Gelado não tem frescura, porque frescura é coisa de trouxa. Privacidade é frescura. Guardanapo é frescura. Higiene é frescura. Alimentação saudável é o ápice da frescurice. De manhã, enquanto tomávamos suco, frutas e biscoitos, Coração Gelado bebia um copo duplo de café, frituras e presunto. “Come fruta, Coração Gelado!”, nós lhe dizíamos. “Que frescura é essa de fruta? Fruta é pros fracos. Fruta pra mim é presunto!”. E quem tentará convencê-la do contrário?

Coração Gelado às vezes quase põe tudo a perder. Como no domingo de manhã, feira ao ar livre, artesanatos à venda. Interessamo-nos por um presente que custava quinze reais, e resolvemos pechinchar. Eu habilmente tentando conquistar a simpatia da vendedora, que já estava quase se apiedando da minha pindaíba, quando ouvimos uma voz seca, com sotaque meio paulista, dizer de forma arrevesada: “Dez paga, né”? Era Coração Gelado se pronunciando. Nós nos entreolhamos todos, com cara de “ein?”. A vendedora não entendeu uma palavra, e Coração Gelado repetiu, sem reformular a frase: “Dez paga, né”? Só faltou dizer “mano”. 

Foi o Macho Jurubeba, que é também o rei da lorota, que veio em nosso auxílio, sugerindo à vendedora que não se importasse não: “Coração Gelado é assim mesmo, está achando que aqui é a 25 de março; desde que veio de São Paulo ela ainda não aprendeu outro vocabulário mais amistoso”. Com algum esforço e muito jeitinho, garantimos o nosso desconto, e o dela também.

Enquanto isso, o Cara Leve estava de longe, se rasgando de rir da situação, o que, no seu caso, significa movimentar de leve os lábios num sorriso silencioso, sem se alterar. Mas daí não se conclua que ele seja enfadonho. Pelo contrário, o Cara Leve é divertido, perspicaz, incisivo, cheio de graça – embora não pareça. Sua leveza deve estar escondida na alma.

O Cara Leve tem a voz tranquila, de modo que nunca se sabe quando está brincando, brigando ou simplesmente bocejando. Sua expressão facial não se altera nem em situações extremas, como quando o esganei para a fotografia. Revelada a foto, suspeitei que fosse botox, mas a verdade é que a leveza o deixa sempre com o rosto plácido. O Cara Leve foi nosso guia na viagem, e logo na primeira tarde nos fez caminhar meia maratona atrás de uma festa de universitários, da qual desistimos na penúltima ladeira porque, ao contrário dele, nós não somos tão leves assim.

Mas o Cara Leve nunca incomoda a ninguém, nem quando deseja ser atendido: no carro, pediu-nos gentilmente que colocasse um CD de que ele gosta, e depois de ouvir compenetrado uma meia dúzia de músicas, nos disse com muita leveza: “já estou satisfeito, obrigado, pode trocar o CD se você quiser”. É preciso admitir que eu, com tanto peso (mais no corpo e demais na consciência), queria mesmo era ser leve assim.

Até para fazer chacota o Cara Leve é leve. Ao ver uma fotografia na qual eu estava usando um pijama meio infantil, em vez de rir-se de mim, como os outros fizeram, ele muito calmamente disse algo como: “ah, é um pijama muito lúdico, deve ser quase como dormir com o patati ou o patatá.” (Talvez tenha vindo daí a vontade de esganá-lo).

Se conto todas essas barbaridades dos meus companheiros de viagem, imagino que eles tenham muitas mais a contar de mim. Ainda bem que esse espaço não é democrático, e fica valendo a minha versão irrefutável dos fatos. Para compensar, deixarei fluir o arroubo de sentimentalismo que me acomete, ao falar dos meus amigos (quase sempre) queridos: eles são insubstituíveis, e nossa amizade não tem preço. “Dez paga”?


Hendye Gracielle

domingo, 21 de outubro de 2012

Show do Chico - Parte 3 (final)




Chico é antigo e sempre novo. No show, músicas recentes foram intercaladas aos clássicos, melodias consagradas em harmonia com arranjos moderninhos. Ao longo da noite nos deleitamos ouvindo todas as canções do novo álbum, “Querido Diário”, “Rubato”, “Nina”, “Barafunda”, “Sinhá”, “Sem você 2”...

Eu ainda não quis saber quem é a lambisguete que está namorando Chico Buarque, mas o blues “Essa pequena” e a balada “Se eu soubesse” entregaram: ele está apaixonado! Dessas paixões que nos deixam bobos, ridículos como as melhores cartas de amor: “E aí, larará, larará, liriri...

Chico é apaixonante!


O samba também estava lá, com cara de CD novo. O músico Wilson Neves foi cantar com Chico o dueto “Sou Eu”. Tinha cara e jeito de malandro, e uma voz de sambista que quase apaga o miadinho frouxo de Chico. Mas a combinação deu certo, e com tanta naturalidade passaram ao “Teresa na Praia, não é de ninguém, não pode ser minha, nem sua também” que eu já não sabia se estava em Sampa ou no Rio, no fino da bossa em Copacabana.

Chico é carioca!


Do alheio, além de “Teresa na Praia”, Chico cantou a versão do rapper Criolo para a música “Cálice”. Foi, digamos, inusitado. Na sequência teve arranjo rock and roll para a música Baioque. “Quando choro é uma enchente surpreendendo o verão / é o inverno, de repente, inundando o sertão”.

Junto com “Geni e o Zepelim”, foram os momentos mais agitados do show.  Eu devia estar muito hipnotizada, porque Chico cantou “joga bosta na Geni”, e eu achei lindo! Estava tudo lindo naquela noite.

Chico é lindo!


Também não faltou o desespero elegante das personagens sofridas de Chico Buarque. “Chorei, chorei, até ficar com dó de mim / E me tranquei no camarim / Tomei um calmante, um excitante, e um bocado de Gim”.

Combinou com o bolero “Sob medida”, quando olhou bem nos nossos olhos e cantou: “Eu não presto, eu não presto”. Eu vi cretinice nesse olhar.

Chico é cafona!


Mas Chico Buarque arrebatou a pequena multidão que o assistia, e arrebentou comigo, foi nos momentos em que cantou as delícias de outrora, criadas no tempo da delicadeza.

Foi sublime, foi etéreo, foi inebriante. Ou no meu português corrente: foi de lascar!

“O meu amor”, “Desalento”, “Futuros amantes”, “Teresinha”, “Anos Dourados”. Naquela noite eu ouvi muitas das canções que inundam meu coração, canções que me despertam e canções que me acalentam.

Parece que dizes, te amo, Maria / Na fotografia, estamos felizes”. Veio a emoção, o choro contido, minha alma se abriu por inteiro. Uma mão querida providencialmente tocou a minha, entrelaçamos os dedos, nessa hora eu me salvei e me perdi...

Chico é emocionante!

São Paulo, sexta-feira, 06 de abril de 2012. Eu fui feliz!

***

Leia também: 

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Show do Chico - Parte 2




Eu daria pra Chico Buarque!

Eu e mais 180 milhões de pessoas, pois Chico é a unanimidade nacional, no dizer de Nelson Rodrigues. E como o mesmo Nelson dizia que toda unanimidade é burra, vamos excluir da conta dois ou três colegas meus que juram que não dariam.

Eu estou com o restante dos mortais, como uma fã que, pelas tantas do show, grita lá da turma do fundão: “Eu te amo, Chico!” E uma voz masculina, do mesmo fundão, responde: “Eu também!”

E que bom que existe a turma do fundão! Eu estava mais ou menos na frente, mais ou menos comportada, e ainda hoje me arrependo de ter reprimido a vontade de subitamente levantar, invadir o palco e agarrar Chico Buarque. Calma, criatura, não se afobe não. Ele é irresistível, mas não é pra tanto.

Oportunamente o pessoal do fundão aprontou uma agitação em coro, com a mais óbvia das ovações: “Chico! Chico! Chico!”. Tá na cara que Chico gostou! A modéstia pode mesmo ser a maior das vaidades. Chico, meio tímido, agradeceu e sorriu.

Riu também quando errou a letra, foi tão discreto, mas eu ouvi! (Eu estava tão atenta, que teria ouvido até um suspiro fora do ritmo). Foi assim: “Afasta de mim esse cálice, pai. De tinto tinto de sangue”.

É claro que ele nem se abalou, mas para nós ficou mais humano, menos mito, um tiquinho mais acessível.

Chico também erra, mas a gente releva e acha bonitinho! Eu achei.

No próximo capítulo: Chico é cafona!


quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Show do Chico - Parte 1


Caro Jorge,

Essa semana faz seis meses que fui ao show do Chico. Como assim qual Chico? Chico só tem um. Os outros não são Chico, são “Chico não sei de que”, “Chico não sei da onde”, Chico Bento, Chico Anísio, Chico Sá, Chico de Dona Maria, Chico do bar da esquina.... Chico, assim em prenome solo, só o Buarque.

E daí, né? Daí que é um pretexto pra eu contar, em três crônicas, como foi o show. Já adianto uma coisa: Chico é lindo! Valeu a viagem, a fila e o rombo na conta bancária.

Saudações, e até a próxima.



SHOW DO CHICO - PARTE 1

Sexta-feira, 06 de abril de 2012. Hall do HSBC Hall, São Paulo. Uisquinho pra lá, canapezinho pra cá...

Chico Buarque de Hollanda em cores, tamanho real. Fila pra tirar foto com o Chico de papelão.

É lógico que eu fui!  Tirei foto com o cartaz, sabendo que não tiraria ao lado do verdadeiro. Comprei o CD novo, sabendo que não seria autografado.

(Aliás, eu tive a desfaçatez de perguntar se os CDs seriam autografados, e o vendedor teve a desfaçatez de rir na minha cara!!! Ah, meu caro, não custa sonhar, e você me vem com zombaria numa hora dessas?)

Todos a postos, devidamente acomodados em suas mesas elegantes e espaços exíguos. Eu confesso! Confesso que algumas vezes passamos os olhos pela platéia, buscando flagrar algum rosto conhecido de celebridade de televisão. Pois não há sempre nos DVDs gravados no Rio ou São Paulo aquelas carinhas conhecidas sorrindo para o seu artista preferido? Bem, tudo que conseguimos foi um sósia do Collor sentando-se à nossa mesa e ameaçando atrapalhar-me a visão. Mas calma, nem tudo está perdido. Empurra a cadeira um pouquinho pra lá, puxa a mesa um pouquinho pra cá, pronto, visão completa do palco e de Chico.

Meu Deus, é Chico mesmo, tô vendo ele todo, que fofo, tô vendo até o pezinho marcando o compasso.

Mais novo que imaginei, tímido, lindo, penteado, perfumado (tenho certeza de que senti seu cheiro! Será que eu tô sonhando?) Começo a ouvir aquela vozinha fraca e quase desafinada: não tô sonhando, é ele mesmo!

Esqueci de tudo, esqueci de quem eu sou e de quem eu não sou, não tem mais ninguém no teatro, não tem mais ninguém no mundo, tô vendo Chico Buarque ao vivo cantando pra mim.

Se eu tiver de sofrer, se eu tiver de penar, se eu tiver de morrer, se houver terremoto ou vulcão, arrastão de pivete ou avião caindo, que não seja agora, meu Deusinho querido, que seja daqui a duas horas, depois do show.

Obrigada, Deus! 

No próximo capítulo: "Eu daria pra Chico Buarque"

sábado, 29 de setembro de 2012

“Existirmos, a que será que se destina?”¹


Às vezes eu me pergunto, pra que diabos é que estamos aqui, nesse mundão de deus? Por qual motivo passarmos por essa contingência carnal que é a existência, se não há sequer a certeza de uma morte eterna, ao final do suplício?

Há os que sofrem durante toda a vida, desguarnecidos ante as intempéries do existir. De outro lado, há aqueles que passeiam em vida eterna de deleites esplêndidos, herdeiros do Éden, latifundiários da bem-aventurança. E nos há. Nós, os medianos. Nós, os remediados. Nós, cuja vida não é nem Pasárgada nem Gomorra. Nós, de debates mornos e lutas comedidas. Nós, os entusiastas do cotidiano. Nós, os clandestinos das estatísticas oficiais. Nós, os habitantes do limbo sócio-político-econômico-sentimental. Nós, os verdadeiros impostores.

Eu tenho cá essas preocupações, à maneira dos filmes suecos, onde, na ausência de problemas sociais mais prementes a serem enfrentados, eles podem ter o luxo de se angustiarem com as questões existenciais. Culpada pelo conforto de que disponho - exíguo, mas ainda assim privilegiado -, e levemente atormentada pelo mal que não me aflige, eu me pergunto, sempre e sempre: qual o sentido de existirmos?

Não é surpresa que eu não saiba a resposta. Se a soubesse, meu nome constaria nos compêndios de filosofia, com sorte; ou, com azar, na lista negra da Santa Inquisição. Não sei a resposta, e a perspectiva é de que nunca a saberei com segurança. Impossível é o encontro, entretanto busco. Não são bem as respostas que nos fascinam, o que nos instiga são as perguntas – aliás, talvez resida aí a diferença essencial entre psicanálise e autoajuda.

Evito recorrer a uma e a outra, mas estou ainda presa à cercania das indagações. Dizem² que o universo conspira a nosso favor. Isso talvez explique as várias pistas que tenho encontrado mais ou menos ao mesmo tempo, todas apontando para um mesmo caminho. São de autores que aleatoriamente vêm me resgatar³. Luc Ferry, filósofo contemporâneo, e seu “amor de salvação”, que nos salva, dá sentido à vida, revoluciona. Carlos Drummond de Andrade, com seu fatalismo lírico: “que pode uma criatura senão, entre criaturas, amar? Amar e esquecer, amar e malamar, amar, desamar, amar? Sempre, e até de olhos vidrados, amar.” Até mesmo Mário de Andrade, aquele desvairado com mania de correspondência, parece corresponder-se diretamente comigo, pelo seu Noturno de Belo Horizonte, dizendo-me que “o amor é muito maior que a paz”. O universo literário conspirou a meu favor, e agora eu o compreendo. E compreendo aos muitos outros poetas que cantam e cantaram o amor, e o cantarão, a despeito da rudeza dos nossos tempos.

Amor ao próximo, à carne próxima, amor de paixão. Amor de compaixão, o mais difícil e mais sublime: amar ao meu dessemelhante. Amor de perdição, essa cafonice à qual eu me rendo. É o que nos alenta nesse mundo aviltante, é o que nos salva nesse supermercado de almas, é o que faz de nós menos humanos, porque cada vez mais etéreos.

De Almeida Garret conheço um único verso, decorado do livro de literatura do segundo grau. É apenas um verso, poesia incompleta, imagem desprendida a vagar pelos meandros da memória. É apenas um verso, mas tem para mim a força de uma obra completa:

“Esse inferno de amar – como eu amo!”.

Eis a síntese de nossa contradição. Como pode haver, sob a mesma pele frágil, perfumada e perecível do amor, essa força que é nosso alento e ao mesmo tempo nossa danação? Como pode esse descabimento infinito, tão contrário a si mesmo, dar sentido à nossa vida? A compreensão parece advir da poesia, não só a que encontramos nas páginas de poemas, mas aquela que existe em cada ser amoroso (“sozinho, em rotação universal”), no lirismo com que enxergamos o mundo, as criaturas, a dor e a delícia de viver.

Se é nas artes que Deus existe, como ouvi recentemente de uma colega tão perspicaz, é possível que pela poesia comecemos a compreender um dos propósitos de nossa existência.

Hendye Gracielle4



NOTAS
1 – O título é trecho da música Cajuína, de Caetano Veloso.
2 – Quando digo “dizem”, quero dizer Paulo Coelho. Relutei em citá-lo nesse espaço pseudoliterário, mas agora me envergonho da hesitação, e recebo, no perdão dos leitores menos conservadores, os benefícios da confissão premiada.
3 – Obriguei-me a não incluir Chico Buarque, porque se eu começasse a citá-lo, esse texto acabaria num compêndio inesgotável de frases incríveis e impagáveis.
4 - Crônica com notas de rodapé. Isso aqui tá ficando chato, ein!

sábado, 22 de setembro de 2012

Baratas - Lá em casa tem um tanto também...




Dia desses, estando em outra cidade a trabalho, fui convidada a visitar a casa da irmã do ex-namorado da minha colega de trabalho. O parentesco retorcido interpretei como mau sinal, prenúncio de roubada, mas na falta de propostas menos familiares e mais etílicas, acabei aceitando o convite.

Entramos na residência suntuosa (para os padrões locais), e logo no vestíbulo, ignorando toda pompa e sem fazer cerimônia, uma barata cruzou nosso caminho. Não, caro leitor, não se trata de uma metáfora kafkaniana. Foi uma barata mesmo, espécie blatella germanica do filo dos artrópodes, monstro insetídeo que, na mitologia feminina, representa a encarnação de todos os males que um dia escaparam da caixa de Pandora. Eu bem tentei ignorar, mas a própria dona da casa resolveu dar uma desculpa qualquer: “Essas bichas estão em todos os lugares, dominando o mundo, não é mesmo?”.  Pelo contexto, creio que se referia às baratas.  Continuou: “Ainda bem que você não gritou”.

É claro que não gritei; será que me tomou por alguma histérica tresloucada, só porque cheguei com os cabelos desgrenhados? Não gritei, evidentemente, mas também não pude continuar com minha pequena farsa de quem não viu nada. Num acesso de altruísmo, respondi alguma bobagem inverídica, apenas para deixar a anfitriã menos constrangida: “- Ah, é assim mesmo, lá em casa tem um tanto também”.

Péssima frase, mas a palavra pronunciada não dá ré. Em vez de se sentir agradecida pela minha simpática reação, a mulher me olhou com uma cara de asco, nojo de mim e dos meus supostos insetos, e só pela educação que mamãe me deu é que não dirigi os maiores impropérios à dona da casa com baratas. Apenas sorri e continuei andando, já arrependida por não ter gritado e saído correndo dali enquanto ainda estava em tempo.

Ultrapassado o momento das conversas amenas, fofocas e lugares-comuns, finalmente fui convidada à mesa. Quando penso que a noite começará a me revelar suas delícias insuspeitas, de súbito me abandonam as derradeiras esperanças: em lugar da cachacinha, que, por ser típica da região, eu já contava como certa, ofereceram-me um lanche de empadinha com suco de polpa de cacau. Numa palavra: broxante. Mas talvez nem tudo estivesse perdido.

Como eu nunca tinha experimentado suco de cacau, acabei aceitando com relativa boa vontade, porque eu queria saber se aquele líquido branco tinha gosto de chocolate (não tem). Estava a ponto de esquecer meus recentes infortúnios, entregando-me de coração aberto à degustação do tal suco de cacau, quando vejo que o copo que me deram veio com marca de batom! Com calma tento dominar meu nojo, e me convencer de que um copo mal lavado não é nem assim coisa tão grave. Entretanto, rapidamente minha mente demoníaca vem me lembrar do inseto que vimos há pouco, subitamente todos os elementos da cena passam a fazer sentido, começa a me subir uma espécie de gastura nauseabunda, e de repente eu estou convencida de que a marca de batom tenha sido feita pela boca da própria barata!

Foi um delírio que logo passou, mas, por precaução, ajeitei discretamente o copo de modo que meus lábios tocassem apenas seu lado ainda imaculado. Bebi o suco, pois já estava servido, mas recusei os quitutes com veemência, argumentando que estava fazendo dieta. Quiseram saber qual, e eu já ia respondendo “dieta da barata, comecei agora”, mas dessa vez o cérebro foi mais rápido que a língua. Muito convicta de que sairia ilesa, inventei o regime mais improvável que me ocorreu naquele momento: “dieta do chá das cinco, pela qual sempre que o dia do mês for múltiplo de 5 eu só posso tomar infusões preparadas com folhas de chá do Reino Unido”. Qual não foi meu terror quando percebi, de soslaio, a anfitriã se dirigindo a um mato crescido na beirada do seu muro, já me garantindo que havia ali uma moita importada da Inglaterra, que resultava num chá delicioso que ela mesma prepararia.

Desconfio agora que a erva do chá que acabei ingerindo era o mesmo matinho que serviu de esconderijo à barata que vimos horas mais cedo, e que encontrei esmagada junto ao portão de saída, quando finalmente pude me evadir dali. Naquela noite crudelíssima, nem eu nem a barata tivemos escapatória.

Hendye Gracielle

*****
O desenho que adorna essa crônica é do ilustrador Murilo Silva (murilosilvadesenhos.blogspot.com). A figura foi capturada do blog: papasmiscleo.blogspot.com.br.

Para as pessoas que passam por este singelo blog apenas para se deliciarem com os desenhos do Troche, não fiquem tristes, ele voltará. 

domingo, 2 de setembro de 2012

A culpa é do Jorge





“(...) o Buraco Negro, por onde desaparecem, no infinito do esquecimento
e do nada, os objetos definitivamente perdidos.
(...) Contra o Buraco Negro, por onde nós mesmos um dia
seremos sugados, simplesmente não há solução.”
(Fernando Sabino)



Tem gente que tem mania de perder coisas. Li, em Sabino, que deve existir um buraco negro onde vão parar todas as coisas sumidas e perdidas do mundo. Uma seção cósmica de “achados e perdidos”.

Com toda certeza, lá em casa tem um buraco negro desses. Deve ficar no corredor, cujas coordenadas geográficas são estratégicas para receber os objetos desaparecidos do quarto, do banheiro, da sala e do escritório. E, por sedex, os objetos que perco na rua. Sua profundidade não será medida em palmos, como todo buraco que se preze, mas já em hectares, pois são incontáveis os objetos que consigo fazer desaparecer, como um Midas do ostracismo: tudo o que toco, em vez de virar ouro, desaparece para sempre. A situação é calamitosa. Em minha residência tão mundana, São Longuinho é dos poucos santos para quem eu faria um pequeno oratório e, eventualmente, acenderia algumas velas – isso, é claro, se eu conseguisse encontrar a caixa de fósforos que sumiu anteontem.

Até aí, normal. O que já começa a estranhar é que essa mesma pessoa – no caso, eu – tenha mania também de fazer listas. Todas as modalidades de lista. Tenho as listas clássicas - filmes vistos, livros lidos, livros adquiridos, lugares visitados (com os pormenores de cada passeio), CDs e DVDs, objetos emprestados. E de vez em quando cismo de fazer listas mais insólitas. Hoje mesmo, tendo perdido o terceiro fone de ouvido do mês, pensei em fazer uma lista de objetos que somem. Como não achei a caneta, desisti da empreitada.

É um contrassenso: sumir as coisas normalmente é característica de gente desorganizada; fazer listas, ao contrário, é costume de quem gosta de se organizar. Dizem que sou bastante organizada. Os desafetos dizem mais: que isso, em mim, beira à neurose. Na minha gaveta da sala, os CDs e DVDs estão organizados por ordem alfabética, para facilitar sua rápida localização. Na estante da biblioteca, os livros agrupam-se por categoria: literatura em língua portuguesa, literatura em língua estrangeira, poesia, coleções, livros infantis, livros de cinema, e, relegados às áreas mais empoeiradas e menos acessíveis do móvel, os livros jurídicos dividem espaço com auto-ajuda empresarial. E para ocupar uma vaga nessa minha estante já esquadrinhada, os livros devem antes passar pela catalogação na lista que mantenho no computador (e agora na nuvem do google), onde inscrevo o nome da obra, do autor, editora, procedência e observações relevantes (ex.: se está autografado, se foi comprado em viagem, se foi presente, se foi surrupiado de algum amigo incauto etc). Na minha casa, as coisas têm seu devido lugar – entretanto, somem.

Por isso resolvi escrever essa crônica, que já vai pelo fim – tentativa vã de compreender esse paradoxo existencial: o de ser ao mesmo tempo a pessoa que “faz listas” e a pessoa que “some coisas”. Criaturas assim são, de ordinário, incompatíveis, como já disse. Não podem ocupar o mesmo ser. Cabe exorcizar uma delas, ou, solução mais humana, botar a culpa em alguém.

E como não tenho irmão a quem atribuir meus infortúnios domésticos, só posso crer que, a despeito de todo meu esforço organizacional, existe um ser invisível que sorrateiramente subtrai as minhas coisas e nunca mais as devolve. O leitor que é assíduo dessas pequenas crônicas já advinha que a conclusão possível é somente uma: a culpa é do Jorge.



******

PS.: Se você é recém-chegado nessas paragens, e ainda não sabe quem diabos é Jorge, descubra aqui: "Salve, Jorge!".


terça-feira, 21 de agosto de 2012

Quando o amor não acaba



O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; (...)

Uma carta que chegou depois, o amor acaba; uma carta que chegou antes, e o amor acaba; (...)

De manhã, de tarde, de noite; na floração excessiva da primavera; no abuso do verão; na dissonância do outono; no conforto do inverno; em todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba; por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba.

(Paulo Mendes Campos)


O problema é quando o amor não acaba. Viramos a página do livro, e o amor não acaba. O filme saiu de cartaz, mas o amor não acaba. Já estamos em outra estação, outro século sentimental, outra cidade invisível de Calvino, outra dimensão paralela de Borges, outra crônica de Paulo Mendes Campos. Já estamos em outra, mas o amor não acaba.

Não adiantaria queimar os livros, os filmes, os sutiãs, as bruxas, as cartas que você me deu. O amor não se queima, o amor é salamandra mágica, o amor é o próprio fogo, que arde sem se ver e sem se ouvir, porque nosso romance é invisível e nossa dor é em voz baixa. Mas nosso amor não acaba.

Sempre damos um jeitinho de continuar amando. O fim desse amor inviável, adiado infinitamente. Irresponsavelmente. Irresistivelmente. Amor que nasceu terminal, com os dias contados, marcado pra morrer. Eu era jovem de poucos anos e muitas vidas; você existia em plenitude, para muito além de mim. Prognósticos desastrosos, entretanto o amor vingou. Enraizou. Cresceu. Só não deu frutos. Esqueceu-se de envelhecer. Recusa-se peremptoriamente a morrer.

Rasgar as páginas dos livros que te dei, não vai adiantar. Mudar o número do telefone, do cartão de crédito e do mapa astral, não vai adiantar. Seu cheiro ficou na minha pele, no meu cabelo, no meu ar. Só enquanto eu respirar, vou me lembrar de você. E nosso amor está fadado à eternidade.

domingo, 12 de agosto de 2012

De perto ninguém é normal - No cinema




Paulo Mendes Campos já nos ensinou a diferença entre chatear e encher. Cá com os meus botões, eu tenho uma teoriazinha que diferencia o chato do sistemático. O chato é aquele que incomoda o outro. Chato é carrapato, o povo diz, com sua sabedoria prática e plurissignificativa. Chato é o pica-pau, o Ace Ventura, o Faustão. Já o sistemático não incomoda, mas se sente incomodado pelo outro. É o eterno personagem do Woody Allen. É o fresco. Sou eu.

Definitivamente, eu sou sistemática. Cinematograficamente sistemática. Incomodam-me coisas grandes, como celular tocando durante a projeção; coisas pequenas, como o barulho do saquinho de pipoca; coisas esdrúxulas, como gente chutando a cadeira da fila da frente; coisas normais, como tosse e espirro dentro do cinema.

Aliás, pesquisas de Harvard ou de Cambridge já devem ter descoberto os genes que controlam os neurotransmissores que produzem o pigarro (alheio) nas horas mais impróprias. Alguém vai tossir no momento em que o personagem fizer a maior revelação do filme de suspense, se declarar no romance, ou disser a frase mais nonsense no filme cult. E eu não vou ouvir. (No caso do filme cult, não faz mal, porque eu não iria entender mesmo). É sempre ao meu lado aquele barulho incômodo de gente existindo.

Também acho insuportável quando todo mundo começa a se levantar e a conversar segundos antes do término da projeção. Será que ninguém vê que eu estou tentando ler os créditos finais? No meu código de conduta em espetáculos públicos, não se deve desgrudar a bunda da cadeira até que as luzes se acendam. 

Por essas e outras, eu assinaria qualquer abaixo-assinado para projeto de lei que proibisse comida, conversa e circulação durante a projeção. Seria da maior relevância cultural, né não? Entrou no cinema, está proibido de emitir ruídos de qualquer espécie. Exceto nas comédias, que só são engraçadas no cinema, justamente porque a risada é contagiante. Nos demais filmes, deve-se proceder com quietude reverencial.

Imagina se alguém conversa na hora do “Rosebud”, do “I see dead people”, do “We’ll always have Paris” ou do “Dadinho é o caralho, meu nome agora é Zé Pequeno”? Imagina se alguém atravessa na minha frente na hora do iceberg, nunca mais eu iria entender como Deus afundou o Titanic...

Hendye Gracielle

Hitchcock é dos meus!


***

Se você ainda não sabe a diferença entre chatear e encher, é só conferir a crônica do Paulo Mendes Campos no volume dois da coleção Para Gostar de Ler. Mas se você não sabe o que é Para Gostar de Ler, ou você não teve infância ou ela aconteceu depois dos anos oitenta. Em ambas as hipóteses, você não tem salvação.

domingo, 5 de agosto de 2012

Eu tive um futuro promissor




Trabalho em empresa estatal, pra não morrer de fome, e escrevo crônicas, pra não morrer de solidão.

A indecisão vocacional faz parte do meu curriculum vitae – trajetória de vida – desde minha pré-história, embora a consciência disso seja menos longínqua.

Folheando antigos cadernos, redescubro antigos sonhos de criança. Evidentemente estapafúrdios. Como o de ser pintora (de quadros impossíveis), escritora (de bula de remédios), até mesmo costureira (de trajes invisíveis), e, pasmem, advogada (de filme americano - mas já descobri que os tribunais cinematográficos superam com folga nossa insossa realidade forense).   

Houve um breve período em que quis ser webmaster. Aprendi sozinha a programar em linguagem HTML, e fiz dois ou três sites medianos, que ainda hoje navegam à deriva na rede mundial. Empolgada com a informática, frequentei até curso de montagem e manutenção de microcomputadores. O entusiasmo durou até o dia em que meus tímidos conhecimentos tornaram-se obsoletos. Foi bastante rápido, e é claro que não tive ânimo para acompanhar o frenesi da evolução cibernética. Eu ainda não sabia, mas já tinha em Macunaíma meu anti-herói inspirador: “Ai, que preguiça”.

De um extremo a outro, escrevi alguns poemas na adolescência, mas depois de um tempo julguei a temática pueril e a forma pouco revolucionária. Abandonei-os com afinco, e apenas minha avó sente falta daqueles rabiscos.

Cresci, quis ser jornalista, e fui cursar Comunicação Social na UFMG. O curso disponibilizava quatro modalidades de graduação, o que me fez mudar de opinião a cada quarenta e cinco dias. Entrei como jornalista, cogitei “relações públicas”, interessei-me por “rádio/TV”, mas seduziu-me a publicidade. Sendo esta última incompatível com meus ideais libertários, voltei para o jornalismo, definitivamente. Minha aventura acadêmica na metrópole durou até o final do semestre, quando tranquei a faculdade e voltei pra terra do pequi.

O motivo do meu retorno eu nunca soube com clareza, e a cada pessoa que me interpelava eu respondia algo diferente, pensado na hora e esquecido em seguida. Tudo verdade. Certamente houve várias motivações, algumas inconfessáveis. A saudade da família contribuiu, mas só a um amigo imaginário ousaria segredar tal fraqueza sentimental. Às vezes me convenço de que o motivo mais decisivo foi ouvir tantas pessoas dizerem que o jornalista tem a grande responsabilidade de entender de todos os assuntos. Meu fraco ânimo assustou-se com a perspectiva aterradora de saber de tudo um pouco, e escorei-me em Sócrates para elegantemente declinar da responsabilidade: “tudo que sei é que nada sei”. Argumento filosófico irrefutável, e foi o fim de (mais) um sonho.

Abandonado o jornalismo, voltei para cursar Direito na Unimontes. Nos dias úteis eu freqüentava as aulas; nos inúteis, elucubrava profissões que pudessem me resgatar daquele abismo jurídico em que voluntariamente me precipitei. Por razões felizmente esquecidas, pensei em estudar letras, psicologia, psicanálise, sociologia, biblioteconomia, as infinitas variações de engenharia, filosofia, ufologia e zen-budismo. Pensei até em fazer cinema, influenciada pelo Cinema Novo e pela resposta de Joaquim Pedro de Andrade à pergunta “por que você faz cinema?”:

“(...) para que conhecidos e desconhecidos se deliciem / para que os justos e os bons ganhem dinheiro, sobretudo eu mesmo / porque de outro jeito a vida não vale a pena (...)”.

Algo que fizesse minha vida valer a pena, era o que eu procurava. Em vão. É lamentável que não exista um Google para buscas existenciais; para isso temos apenas o divã do analista, que ainda não experimentei, com medo de me viciar. Nesse meio tempo, terminei a faculdade, e o caminho mais óbvio que se me apresentava era o dos concursos públicos de nível superior.

Sempre que penso em prestar novos concursos, sinto uma dor aguda um pouco abaixo da costela direita, que interpreto como prenúncio de tédio, mas acho que pode ser também sintoma de preguiça.

A única carreira jurídica que fez meus olhos brilharem foi a de diplomata, seguramente a menos entediante. Mas para ingressar na diplomacia, devem-se falar três línguas estrangeiras, obstáculo por ora intransponível: no meu inglês “the book is (still) on the table”. De outro lado, je ne parle pas le français, embora tome lições semanais do idioma, o que até agora só me ajudou a pronunciar o nome dos meus cineastas preferidos. E em espanhol sei apenas dois palavrões decorados dos filmes de Almodóvar. Menos cosmopolita do que eu gostaria, só domino mesmo a língua de Camões, ainda assim em parcos vocábulos. Como resultado, a diplomacia acabou virando objetivo de longo prazo, talvez daqui a duas encarnações.

Periodicamente volto a sentir uma inquietante vontade de fazer tudo. Às vezes basta esperar a vontade passar, às vezes não. Há um ditado preconceituoso segundo o qual “quem sabe, faz; quem não sabe, ensina”. Vai ver ao menos a mim ele se aplica, porque tenho freqüentado aulas de pós-graduação em docência, que me habilitarão a lecionar no ensino superior. Só pra completar a mixórdia. (Permito-me abrir um parêntese para dizer que, nem sempre, quem sabe mais, melhor ensina. A boa docência requer generosidade, paciência e didática, atributos  que não se confundem com o conhecimento, embora possam andar juntos – menos nas ciências jurídicas).

No fim de semana passado, minha tia Luciana, que trabalha na área da educação, ofereceu a minha prima vestibulanda um teste vocacional. Intrometi-me na conversa com meu tradicional entusiasmo (graficamente representado pela expressão “uh”):

“- Uh, Tia Lu, eu também quero o teste, pra ver se descubro o que fazer da vida!
- Uai, Grá, talvez você já até esteja no caminho certo.
- É, eu estou no caminho certo, só preciso achar a placa de retorno!”

Seguindo pelo atalho das incertezas, o maior risco que corro é o de ter como epitáfio aquela desencantada máxima anônima: “eu tive um futuro promissor”. Ou aquele poema de Leminski, variação menos lacônica do mesmo tema: “aqui jaz um grande poeta / nada deixou escrito / este silêncio, acredito / são suas obras completas”.

Ainda hoje poder-se-ia perguntar o que vou ser quando crescer. Não tenho a resposta, talvez nem chegue a compreender o alcance da pergunta. Nada sei de interrogações ou exclamações pragmáticas - os meus vinte e poucos anos têm sido pontuados por promissoras reticências...