quinta-feira, 31 de maio de 2012

Picareta ele, vigarista eu – Sobre a arte da picaretagem acadêmica




Passei cinco anos picaretando na faculdade de Direito. Não me entenda mal. Eu tenho muito respeito pela faculdade pública, e conheço minhas responsabilidades sociais em ocupar uma vaga que é custeada pela sociedade. E ainda pretendo reverter meus conhecimentos profissionais (assim que eu os encontrar) em benefício da comunidade carente (de dinheiro, de educação, de atenção ou de amigos, carência da qual também padeço e sei como dói).

Mas que eu picaretei, isso sim. Pelo menos dentro da sala de aula, onde pode-se dizer que apenas espelhei o que 80% dos advogados vigaristas, digo, professores queridos também faziam lá dentro. Picaretar. Picaretagem jurídica era a disciplina mais prestigiada da grade.

Não foi preciso muita clarividência para perceber que, nos anos de faculdade, foi fora da sala de aula que me formei. E nem estou falando das noites boêmias nos bares circunvizinhos, embora isso tenha contribuído sobremaneira para minha educação sentimental. Estou falando da faculdade mesmo, de todas as experiências que ela nos proporciona, fora da sala mas dentro de sua aura, naquele ambiente que nos instiga e nos amadurece. São os anos em que a gente aprende a se posicionar em face do mundo, superar nossas fraquezas, descobrir nossos valores, nossas paixões.  Onde tudo é novo e nada é vão. Ou vice-versa.

O fato é que, mesmo na base da picaretagem, foi nos anos de faculdade que me formei para a vida, agucei o espírito crítico e o gosto pela reflexão. Por isso recomendo a todos os que amo que façam faculdade (aos que odeio, desejo apenas o inferno-astral do cursinho). Apaixonei-me pelo ambiente acadêmico, tanto que voltei a estudar, agora em pós-graduação. E comprovando que se trata de regra, e não de exceção, encontrei em outra instituição de ensino as mesmas picaretagens dos tempos de faculdade.

Na aula de pós-graduação dessa semana, por exemplo, o professor passou bastante tempo falando sobre coisas inúteis, numa profusão de clichês reproduzida por boa parte dos colegas. Em seguida, prescreveu um trabalho para casa. É de conhecimento notório que a forma mais elegante de picaretagem docente é representada pelos trabalhos acadêmicos, pelos quais se transfere ao aluno a obrigação de dar aula. Mas admito que, ao fim e ao cabo, a gente acaba aprendendo alguma coisa, desde que a pesquisa tenha ido além do famigerado “ctrl+c / ctrl+v”. Recurso este que nunca utilizei, entenda-se bem, que minha picaretam é à moda antiga e não admite cópia. Sou uma picareta de princípios!

Voltando ao tal trabalho, a atividade consistia em redigir um texto dissertativo sobre o tema da informação. Desconfio que o mote tenha sido escolhido pelo professor lá na hora mesmo, pois o assunto saiu do nada e foi a lugar nenhum. Picareta ele, vigarista eu: produzi o texto, e busquei empregar-lhe certo estilo, posto que a boa forma disfarça o mau conteúdo. Como nem sei se o professor vai se dar ao trabalho de ler o texto (muito menos meu blog, assim espero!), resolvi reproduzi-lo aqui (vide postagem anterior), para que tenha ao menos um leitor imaginário. Porque picaretagem demanda esforço e merece reconhecimento.

Fiz o texto com bastante esmero, procurando alcançar o estado da arte em picaretagem acadêmica, que consiste em escrever muito sobre coisa alguma.

E assim temos feito.

Hendye Gracielle


Em tempo: agradeço de coração aos 20% dos professores comprometidos do curso de Direito da Unimontes, que foram fundamentais na minha formação. Abraços efusivos aos verdadeiros mestres, com carinho.

sexta-feira, 18 de maio de 2012

"Registro meus parabéns" (ou Dos Afagos Burocráticos)



Semana passada foi aniversário de uma colega de trabalho. Todas as pessoas do setor receberam um e-mail automático, avisando do relevante acontecimento. Daí que vários colegas telefonaram, mandaram e-mail, torpedo, fax, recado, comunicator, sinal de fumaça ou vibrações positivas para ela. Algumas mensagens menos, outras mais inspiradas; alguns abraços mais, outros menos sinceros.

Uma das felicitações mais curiosas foi o e-mail enviado por um colega de outra cidade, um profissional bastante eficiente que poderíamos chamar de funcionário padrão, se isso ainda fosse elogio. Era assim:

“Registro meus parabéns! Atenciosamente, fulano de tal.”

Como assim, “registro” meus parabéns? Que maneira burocrática de se felicitar alguém! Será que foi pra “constar” que ele é educado? Arquivamento para futuras providências? Evitar que a data prescrevesse?

Na falta de criatividade, em vez do insosso “registro meus parabéns”, não teria sido melhor empregar as fórmulas já gastas pelo uso, mas consagradas pelo costume, tais como “muitas felicidades”, “seja feliz”, “parabéns”, “feliz aniversário”, “carinhosamente”? Concluo que não se trata de falta de criatividade, e sim de “burocratismo” em fase aguda. É que a monotonia do trabalho burocrático acaba se entranhando na gente, funcionário de escritório do setor público ou privado.

Eu até encaminhei à minha colega, como sugestões de resposta: “Está registrado, grata, ciclana”. Mas a idéia dela foi melhor: “Prezado fulano, acuso recebimento”.


Faz uns seis anos, eu ainda não era burocrata, quando descobri que foi Max Weber um dos maiores entusiastas da burocracia na era moderna. Um sociólogo, quem diria. A intenção era nobre, na prática é que o objetivo foi desvirtuado, o que é muito comum e já não surpreende. A burocracia virou um fim em si mesmo.

Havemos de estar sempre alertas pra que o automatismo do ambiente profissional não contamine o restante da nossa vida (para os que ainda a têm). O formalismo da burocracia tem braços de polvo, e de forma lenta, gradual, mas segura, vai invadindo o espaço das relações interpessoais. Ou das relações espirituais, como certa vez aconteceu comigo, ao fazer uma oração matinal. Foi assim:

“Prezado Deus, bom dia! Favor proteger minha família e meus amigos. Gentileza relevar minhas falhas, que serão devidamente retificadas. Desde já agradeço as graças recebidas. Atenciosamente...”

Só no atenciosamente (!) é que saí do automático e me dei conta do absurdo da situação. Daqui a pouco vou exigir de mim mesma um número de protocolo pra falar com Deus. E não me surpreenderia se o mesmo resolvesse me atender somente com hora marcada!

sábado, 12 de maio de 2012

Da nossa vontade urgente e nossa sede infinita


Veja você, meu amigo Jorge, o que o amor é capaz de suscitar no coração das criaturas de carne e osso.




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"i like my body when it is with your
body. It is so quite new a thing.
Muscles better and nerves more.
i like your body. i like what it does,
i like its hows."

(e. e. cummings)

Gosto do seu cheiro, da sua pele, do seu cabelo.

Gosto do cheiro da sua respiração. Quando a gente se beija, é também pelo olfato que você inunda a minha alma.

Gosto da temperatura do seu corpo, quando meu rosto toca a sua pele. Gosto da ponta dos seus dedos nas minhas costas; gosto da mãozinha leve que me acaricia ou da mão segura que me conduz ao abismo e me traz de volta.

Gosto dos meus dedos nos seus cabelos, escorregando por entre os fios. Forte ou de leve: desejo ou cafuné.

Gosto do seu rosto e da sua gargalhada. Da sua elegância desajeitada. De quando você desafina ao conversar. Do seu sorriso de olhos fechados.

Gosto das nossas conversas sobre tudo e sobre nada. Das discussões metafísicas, das aflições domésticas. De assuntos pretensiosos discutidos a meias palavras, quando o esforço é dispensável e a afinidade é completa. Gosto das discordâncias e contradições; vem você com a tese, eu com a antítese, e a síntese é nossa.

Gosto de compartilhar com você os valores pelos quais eu vivo. Gosto de sua presença, que me faz esquecer as agruras deste mundo de absurdos. Gosto do pensamento que ao mesmo tempo é meu e é seu. Das referências a livros e filmes que mais ninguém viu. Da nossa vontade urgente e da nossa sede infinita.

Gosto da cafonice das nossas juras de amor.

Hendye Gracielle
12 de maio de 2012

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PS.:

1.Poema completo do e. e. cummings:

“i like my body when it is with your
body. It is so quite new a thing.
Muscles better and nerves more.
i like your body. i like what it does,
i like its hows. i like to feel the spine
of your body and its bones, and the trembling
-firm-smooth ness and which i will
again and again and again
kiss, i like kissing this and that of you,
i like, slowly stroking the, shocking fuzz
of your electric fur, and what-is-it comes
over parting flesh … And eyes big love-crumbs,
and possibly i like the thrill
of under me you so quite new”

2. Tradução direta
(www.nemumpoucoepico.com)

eu gosto do meu corpo quanto ele está com o seu
corpo. É uma coisa tão nova.
Músculos melhores e nervos mais.
eu gosto do seu corpo. eu gosto do que ele faz.
eu gosto dos seus comos. eu gosto de sentir a espinha
do seu corpo e seus ossos, e a trêmula
-firme-suavi dade e que eu vou
novamente e novamente e novamente
beijar, eu gosto de beijar isso e aquilo de você,
eu gosto, suavemente acariciando a, penugem escandalosa
do seu pêlo elétrico, e o-que-é-isso vem
acima da carne que se separa… e olhos grandes migalhas-de-amor,
e possivelmente eu gosto da excitação
de sob mim você tão nova.

3. Versão declamada pela Ana Carolina nos shows

Eu gosto do seu corpo
Eu gosto do que ele faz
Eu gosto de como ele faz
Eu gosto de sentir as formas do seu corpo
Dos seus ossos
E de sentir o tremor firme e doce
De quando lhe beijo
E volto a beijar
E volto a beijar
E volto a beijar

domingo, 6 de maio de 2012

“Por isso temos braços longos para os adeuses”



Essa semana o pai de um querido amigo faleceu, e eu me vi sem palavras que pudessem confortar sua dor e demonstrar meu pesar.

Lancei mão de um poema de Vinicius de Moraes, que relera há poucos dias, sem saber que estaria próximo o infeliz momento de empregá-lo. Na ocasião, apenas achei-o sublime.

Lembrando do poema, senti-me satisfeita por ter o livro na estante. Em vez de empreender uma mecânica e fria busca no Google, com o livro em mãos pude folhear suas páginas à procura do poema, o que proporcionou ao momento a intensidade que ele merecia. E pude transcrevê-lo de próprio punho da página ao cartão, materializando meus sinceros pêsames com o cuidado e a delicadeza que meu amigo com toda certeza merece de mim e do mundo.

POEMA DE NATAL
(Vinicius de Moraes)

Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos –
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.

(...)

Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte –
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.


Escrevi os trechos acima, e só então tive a profunda compreensão da beleza e da imensidão dos dois últimos versos, os quais eu sabia de cor, mas não de coração. Acho que a beleza do poema conforta, e a redenção dos últimos versos traz esperança aos que crêem. Não uma vã esperança de impedir a morte, posto que já consumada, mas de transcendê-la.

E me senti, de certa forma, aliviada pela compreensão ter surgido do luto alheio.
E um pouco culpada pela sinceridade do pensamento.


Hendye Gracielle
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PS.: está na página 88 do livro “Nova antologia poética”, de Vinicius de Moraes. Edição da Companhia de Bolso, os poemas foram selecionados por Antônio Cícero e Eucanaã Ferraz.

Sou grata à querida colega Luana, que me presenteou com o livro por ocasião de minha formatura, com a gentil dedicatória: “És preciosa aos meus olhos”. Que delicadeza! 

sábado, 5 de maio de 2012

Salve, Jorge!


Quem diabos é Jorge?

Jorge é meu amigo imaginário da infância. Eu me recordo de falar sobre ele quando criança, de me referir a ele, de me dirigir a ele etc. De modo muito verdadeiro. Mas, pra ser sincera, não tenho a mínima idéia de como ele era.

Lembro-me, sobretudo, do que a minha família me conta. Das nossas peripécias com Jorge.

Certa feita, estávamos, eu criança e minha pequena família, entrando apressados num carro de algum conhecido, para irmos não sei onde, quando eu muito gravemente pedi:

- “Espera, espera, gente; deixa Jorge entrar primeiro. Vai, Jorge!”

Eu sou filha única, como vocês já devem ter imaginado...



E por que "cartas", se não há neste exíguo blog uma missiva sequer?

Um domingo à noite desses, momentaneamente emergi da minha “depressão pré-segunda-feira” para assistir a trechos da entrevista de José Castello no “Conexão Roberto D’Ávila”. José Castello é cronista e crítico literário, mas surpreende pela doçura de suas críticas, menos técnicas e mais apaixonadas. Nada ferozes, ao contrário do que sói comprazer aos críticos de carteirinha.

O entrevistado explicou, em outras palavras, que escreve como quem redige cartas a um amigo, para contar de algo apaixonante ou intrigante que tenha lido.

Dados os devidos créditos, vou descaradamente me apropriar da ideia, e escrever meus despretensiosos textos como quem manda cartas a um amigo. Ao Jorge. 

Espero escrever ao menos um post por semana, mas não garanto, porque tenho muita preguiça e pouco tempo. Nesta ordem.

Terminemos, pois, pelo princípio:

“Caro Jorge, meu amigo imaginário, saudações!

Escrevo sobre o que tenho visto, ouvido, sentido. Para recomendar, para elogiar, para compartilhar. Por vezes, somente para atender ao ímpeto de registrar o pouco que tenho vivido.

Você, meu bom amigo, há de gostar dessas linhas, se não pela (duvidosa) qualidade, pela satisfação de servir de paciente interlocutor a uma amiga de infância.

Saudades (de não estar só no mundo).

Hendye”