sábado, 14 de novembro de 2015

POR QUE VOCÊ FAZ CINEMA?



“Para chatear os imbecis (...) para viver à beira do abismo / para correr o risco de ser desmascarado pelo grande público / para que conhecidos e desconhecidos se deliciem / para que os justos e os bons ganhem dinheiro, sobretudo eu mesmo / porque de outro jeito a vida não vale a pena / para ver e mostrar o nunca visto, o bem e o mal, o feio e o bonito (...) para ser lesado em meus direitos autorais”

(Joaquim Pedro de Andrade /
Resposta musicada por Adriana Calcanhotto)

Eu achava que amor à primeira vista era coisa que não existia. Como Sereia no mar, São Jorge na lua ou gentileza no trânsito. Ou coisa raríssima, como chuva no sertão. Amor à primeira vista pra mim era extraterrestre – dizem que existe, eu quase acredito, mas nunca vi.

Aí a pessoa vai para o primeiro dia de aula da faculdade de cinema e audiovisual – sozinha, tímida, arisca. Ainda em dúvida. Quando o primeiro professor a aparecer na sala se chama Glauber, e o primeiro colega a se apresentar se chama Bergman, você começa a desconfiar de que está no lugar certo. Ou é pegadinha, ou alguma sintonia cósmica tá rolando. Não dá pra não se apaixonar.

As atividades vão acontecendo e você vai se envolvendo mais e mais. Percebe que tem à sua disposição professores incríveis, e incrivelmente acessíveis, professores envolvidos e empenhados como você nunca viu em cursos anteriores (e no meu caso não foram poucos, de faculdade de Direito a curso de saladas para iniciantes). Professores que parecem estar prontos para mudarem o mundo com seu cinema – e também com seus estudos, seu teatro, suas pesquisas, suas reflexões, sua arte... Discutindo questões globais, agindo localmente. Eles são ardilosos e te seduzem para o curso. Não tem como não se apaixonar.  

Oferecem oficinas para colocarmos logo a mão na massa, não tem como não se apaixonar. Organizam uma semana especial para os calouros, não tem como não se apaixonar. Os veteranos começam a mostrar suas produções, surpreendentemente boas, não tem como não se apaixonar. Levam você para fotografar às duas horas da tarde no centro lotado da cidade sob o sol de quase verão; não tem como não se apaixonar. Comentam das dificuldades do curso, limitações de estrutura, problemas da faculdade, mas aí já era – não tem como se desapaixonar.

Você chega se apoiando toscamente nas suas certezas – as minhas eram crítica cinematográfica e carreira acadêmica -, e é sugada por um jardim labiríntico das delícias: pode-se produzir, dirigir, editar, roteirizar, pesquisar, filmar, montar, fazer documentários, clipes musicais, animações, vinhetas educativas, vídeos publicitários (não, obrigada), séries, games, programas de TV, e, até mesmo, fazer cinema no curso de cinema. “Será que eu consigo?” Suas certezas tão bonitinhas são de súbito derretidas, como as películas de antigamente. Plantam-se dúvidas na sua cachola. Como não se apaixonar?

Não foi daqui de Conquista que saiu o cara com “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”? Os equipamentos podem ser poucos, mas estão inteiramente à disposição de nossa criatividade. Aliás, nunca foi tão fácil ter uma câmera na mão. Uma ideia na cabeça já não sei. Mas aí depende de cada um. A ideia a gente inventa, reinventa, desinventa, inventa de novo. A melhor eu já tive: vir estudar, ver e fazer cinema na Bahia!  

Mas para quê?



Para contar histórias mirabolantes. Para mostrar o mundo como ele é. Para mostrar o mundo como poderia ser. Para mostrar o mundo como eu gostaria que fosse. Porque “O Fabuloso Destino de Amélie Poulain” ampliou meu olhar. Porque livro não tem trilha sonora. Para aprender a trabalhar com gente. Para inventar pequenas felicidades. Para experimentar por uns tempos a dor e a delícia de viver de arte. Para sonhar em preto e branco e com legenda de cinema mudo. Porque não é fácil. Para ter meu nome nos créditos finais, mesmo sabendo que ninguém lê. Porque o Cinema Novo existiu. Para amar ainda mais a literatura. Para dirigir um filme com Madê Prates. Porque precisamos de arte, sobretudo em tempo de barbárie e cinismo. Porque passei no SISU. Para escapar da vida de vez em quando. Para torná-la suportável. Porque Woody Allen me persegue. Porque fazer cinema é assim; assado é fazer cinema no interior do Brasil. Porque um dia vi “Ilha das Flores” e nunca mais fui a mesma. Sei lá por quê. Por que não?

Hoje é por isso. Daqui a tantos anos, outras respostas quererão se revelar. Estarei aqui pra escrevê-las. Menos deslumbrada; quiçá ainda mais apaixonada...

Meu lado cético tinha razão: amor à primeira vista é coisa de cinema!

***
Hendye Gracielle
Vitória da Conquista - BA
Desenhos, como sempre, surrupiados do blog do Gervasio Troche.

terça-feira, 12 de maio de 2015

Crônica de aniversário



“Agora eu era o rei, era o bedel e era também juiz
E pela minha lei, a gente era obrigada a ser feliz
E você era a princesa que eu fiz coroar
E era tão linda de se admirar que andava nua pelo meu país”
(Chico Buarque – João e Maria)

Porque sinto como meus todos os seus dias antes de mim, assim como são suas todas as minhas horas antes de sua vinda; por isso celebro, como meu, o seu aniversário.

Foram meus todos os seus minutos, todas as suas dores, todas as lágrimas, todas as quedas, todas as conversas, todas as alegrias, todas as frustrações, todas as banalidades, todas as provações, todas as fantasias, todas as decisões, todas as noites em claro, todas as idas e vindas e voltas e reviravoltas dos caminhos que você percorreu, porque levaram ao irremediável momento em que nossa vida se tocou. Foram meus os seus rumos, foram seus os meus destinos, porque conspiraram sorrateiramente para que nossa vida se complementasse (e se complicasse) tanto e tão irresistivelmente e tão deliciosamente, no tempo em que nós nos apaixonamos.


Celebrar, portanto, não os seus quarenta anos, mas os nossos, posto que são meus todos os dias, todos os meses, todos os anos de sua existência.

Festejar hoje a alegria do amor cultivado com o mesmo desvelo com que se cultivam as flores raras, belas, levemente tóxicas e ainda não nominadas.

E desejar ainda mais.

Aos cinquenta, a bem-aventurança de um refúgio todo nosso: uma casinha com fotos minhas, suas, nossas; seus livros de teatro, meus DVDs em ordem alfabética, sua plantinha frutífera, minha TV alaranjada, sua forma de bolo, minha pasta de recortes, sua mania de perfumes, minha mania de trocar de escova de dentes... 

Aos sessenta, os deslumbramentos e estupefações de um mundo repentinamente acolhedor, que descobriremos lado a lado! (E banhos de chuva, e fotografias insólitas, e cochilos na rede ao entardecer...)

Aos setenta, amar os ocasos, as madrugadas, as alvoradas, as astúcias de uma vida reinventada, os inevitáveis adeuses e os desejáveis regressos. (E filmes velhos, e livros novos, e vinhos raros.)

Aos oitenta, redescobrir o encantamento de nós mesmas, no alvorecer de uma nova estação. (E presentes inesperados, e flores sem motivo, e beijos roubados.)

Aos noventa, lembrar contigo todos os momentos, a vida possível e a que não foi, o tempo vivido e o sonhado... (E poemas trocados, e desejos revelados, e juras de amor.)

Aos cem, a delicadeza do carinho antigo e sempre novo. E quem sabe a coerência suprema do simultâneo desaparecimento: cessado o tempo de coexistir, possamos juntas “desexistir”.

 “Vem, me dê a mão
 A gente agora já não tinha medo
No tempo da maldade acho que a gente nem tinha nascido”

Todas as horas serão nossas; todas as horas e o depois.

Hendye Gracielle
12 de maio de 2015
 
(Desenhos de Gervasio Troche)

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Breve relato das derradeiras emoções do ano que findou
- ou: O Natal da Cidade foi de lascar!!!


Fico indignado quando dizem que cachorro gosta de osso.
Só dão osso ao cachorro, depois dizem que ele só gosta de osso.
Ele adora comida como todo mundo.
Bote um osso e bote um filé para ver qual é que ele escolhe.
Não estão deixando a juventude brasileira entrar em contato com o filé.
Só estão lhe dando osso...”

(Ariano Suassuna, em aula-espetáculo a que assisti em Barbacena,
e em várias entrevistas e palestras que proferiu pelo país,
inclusive em Vitória da Conquista)

Uma tocante homenagem a um dos maiores intelectuais brasileiros, infelizmente recém ido para o céu – Ariano Suassuna –, com direito a instalações artísticas, projeção integral de palestra, murais de xilogravura, bonecos gigantes, exposição de livros.

Uma celebração de manifestações tradicionais, como Terno de Reis, e o incentivo a talentos locais, com concurso de cantores (“Por isso é que eu canto”) e abertura do palco principal para bandas e artistas da cidade.

Tudo isso em espaços públicos – praças e Centro de Cultura Glauber Rocha –, gratuito e aberto para a população, sem área vip, camarote ou cercadinho, só um espaço com cadeiras para quem quiser se sentar, e uma imensa área aberta pra gente ser feliz!

Bom, né? Agora acelera: uma festa da música com os melhores e mais incríveis/competentes/consagrados/inspiradores/delícias/supimpas artistas da música popular brasileira de todos os tempos, inclusive dos tempos de agora – em 2014 foram Paulinho da Viola, Zeca Baleiro, Fafá de Belém, João Bosco, Toquinho, Teatro Mágico, Ana Cañas, Yamandu Costa, Pereira da Viola, Marcos Valle, Roberto Menescal.

Isso tudo eu vi, com esses lindos olhos que a terra demorará a comer, no “Natal da Cidade”, evento anual que acontece em Vitória da Conquista/BA, e no qual, sempre que possível, eu “tô garrada”.

Desenho: Gevasio Troche


A visita ao Memorial, onde estava sendo homenageado Ariano Suassuna, é o início da minha incursão cultural de fim de ano. Ariano Suassuna dispensa comentários, né não? O espaço foi decorado com várias referências às obras e ideias do escritor, e abrigava também o já tradicional concurso de presépios. Eram dez presépios, alguns bastante inusitados, feitos com os mais variados materiais e concepções, dentre os quais uma oca de madeira, toda fechada, apenas com um grande “buraco de fechadura”, através do qual se entrevia a cena natalina; outro era um surpreendente set de cinema, no qual estava sendo filmado o nascimento de Jesus (salve a terra de Glauber Rocha!).

Agora os shows... Ixe (voltei de lá com esse “ixe”), ixe, os shows foram de lascar – que é o mesmo que “da porra” na Bahia, e “do caralho” no resto do Brasil, mas caralho e porra eu não gosto de escrever. Os shows, como ia dizendo, foram de lascar, mas vou falar só um pouquinho, só de alguns, pra não cansar.

Os shows... Teve samba, o melhor do samba, com Paulinho da Viola e suas lindezas: Pecado Capital, Coração Leviano, Foi um rio que passou em minha vida... “Há muito tempo eu escuto esse papo furado dizendo que o samba acabou / Só se foi quando o dia clareou”; essa ele não cantou, mas eu cantei, mentalmente, feliz da vida porque o samba existe e estava ali, ao meu alcance.

E teve a mágica do Teatro Mágico, provando que jovem gosta é de filé, se derem filé pra ele. Tantos garotos e garotas (e eu, essa garota de meia idade) cantando a tolerância, o amor, a amizade, o respeito, a luta por um mundo melhor; tudo sem pieguice, sem mesmice, sem mimimi, só com arte, figurinos, bailarinas, guitarras elétricas e um letrista fodástico. O Teatro Mágico é mesmo um espetáculo!

Fotografia: Hendye Gracielle

Teve mais. Dentro da minha cabeça, teve até revelações literárias... Foi no show de Marcos Valle. Tô ali ouvindo aqueles acordes complexos para letras que parecem tão simples, me deliciando, e num estalo entendo que a crônica é a bossa nova da literatura, ou que a bossa nova é a crônica da música, sei lá. Tudo bem, é possível que outros já tenham chegado a essa conclusão, mas para mim ela aconteceu ali, em pé no meio do público, ouvindo Marcos Valle e Roberto Menescal tocarem “O Barquinho” e “Samba de Verão”. É o cotidiano, a singeleza, a prosa pequena do dia-a-dia, a poesia descalça, despretensiosa, brincando de contar, de cantar. A crônica não tem o fôlego humanista dos grandes romances, assim como a bossa nova não tem as letras profundas da MPB, os sofrimentos dos boleros, os rasgos de voz das grandes cantoras, a rebeldia necessária do Tropicalismo. É simples, mas tocante, como um texto de Rubem Braga, um barquinho à deriva, um dia de sol na praia. Não sei se o mar vai virar sertão, mas ali naquele show o sertão baiano virou mar!

De tanta coisa que eu ainda poderia contar (mas calma, que não vou), teve principalmente o show de Toquinho, na noite de Natal. Esse show, o último do evento, resume bem o encantamento que senti nestes dias de festa e celebração (música boa emociona, né!?): foi encantador ver crianças na plateia cantando empolgadíssimas as suas músicas infantis, como “O Pato”, “A Casa”, “Aquarela”; foi emocionante ouvir a melodia requintada e a letra tão bonita de “O Caderno”, e perceber que se pode enxergar poesia e beleza em objetos prosaicos, e deles fazer metáfora de um curso de vida; foi uma delícia ouvir as grandes parcerias com Jobim, Chico, Vinícius...

No meio do show, Toquinho solando no violão, executando o instrumental de várias músicas, de repente começo a reconhecer a música clássica de Bach – “Jesus, alegria dos homens” -, que foi inacreditavelmente emendada nos acordes de “Asa Branca”, de Gonzagão. Encontro sublime do erudito com o cancioneiro, do clássico com o popular, do universal com o tradicional... Véi, isso é lindo! (Especialmente em épocas de veleidades separatistas de elites pseudo-requintadas, que adoram colecionar Rolex, tomar Chandon e descer até o chão-chão-chão em camarotes “all inclusive”...)


Uma imersão revigorante, esse meu final de ano na Bahia. E uma vontade imensa de que a arte encante muitas e muitas pessoas, cada vez mais, cada vez melhor. Além do “amor-saúde-paz-o-resto-a-gente-corre-atrás” de praxe, isto o que eu desejo em 2015: um ano repleto de arte e cultura; menos osso e mais filé para todos nós. 


Desenho: você já sabe