quinta-feira, 29 de agosto de 2013

É bom quando a elite mostra sua cara



É bom quando a elite brasileira mostra a sua cara. Nos episódios mais recentes da badalada cena política nacional, a elite brasileira assumiu a alcunha de Classe Médica. E esteve muito bem representada pelos indivíduos que foram aos aeroportos hostilizar os novos médicos entrantes no país. Não há que se falar numa “pequena parte”; foi uma amostra representativa da classe representada, assim como os políticos que ascendem a Brasília são uma amostra representativa, em seus laivos de usura, dos valores arraigados na população que eles representam (sim: nós, o povo).

“O todo sem a parte não é todo
A parte sem o todo não é parte
Mas se a parte o faz todo, sendo parte
Não se diga que é parte, sendo todo
(Gregório de Matos)

Ficou difícil? Assim: Brasília é o nosso espelho; os habitantes de seus gabinetes são uma parte do todo que é a nossa população, e espelham os valores médios (ou medíocres) de nossa própria sociedade. Assim também: o jornalista que escreveu sobre “médica com cara de empregada doméstica”, os senhores de branco que chamaram de escravos os médicos cubanos, e outros exemplos ad infinitum, são um espelho da elite – branca, rica e heterossexual (fora de casa, pelo menos) – que sempre ocupou os espaços de prestígio na sociedade. O exercício da medicina é um desses espaços, mas há outros, como o dos industriais, grandes empreiteiros, latifundiários, magistrados... Ousassem incomodar a uma dessas classes, e veríamos cenas semelhantes, diferindo apenas o traje branco pelo de terno e gravata, ou pela bota e espora. Ou talvez com um pouco mais de discrição: não dariam a face a tapa, usariam para tanto lobistas de bastidores. Por isso é que é bom quando a elite brasileira mostra a sua cara.

A falta de recursos para o sistema público pode ser o principal fator do problema da saúde no Brasil (ou melhor, o dinheiro é muito, porém muitas mais são as torneiras de desvio da fonte até a foz). Isso, entretanto, não deveria eximir os médicos de bem exercerem o seu mister. Um médico recém-formado não pode dedicar dois anos de sua promissora vida profissional para atuar compulsoriamente no SUS (sendo remunerado para isso, entenda-se bem)? Não pode perder o brilho de seu status passando alguns anos no insosso interior do Brasil, a não ser por um salário que exorbite do padrão razoável de remuneração profissional? Não se pode adiar por algum tempo o rentável retorno do investimento que papai fez nas mensalidades das faculdades privadas, ou nos cursinhos preparatórios para as faculdades públicas? Talvez o problema seja a concepção da medicina como um investimento, não como um compromisso ou vocação.

“A praça é do povo / como o céu é do Condor.
É o antro onde a liberdade / Cria águias em seu calor!”
(Castro Alves)

Quando a Medida Provisória 621/2013, que institui o Programa Mais Médicos, ainda estava em discussão, um representante do Conselho Regional de Medicina foi ao jornal local de nossa pequena cidade vituperar contra a proposta. Foram concedidas todas as atenções aos argumentos do distinto senhor; questionado, entretanto, sobre quais seriam as alternativas para os problemas que deram origem à norma, não soube dizer. Ajustadas as proporções, creio que ainda se aguardam as sensatas contribuições que o Conselho Federal de Medicina possa dar aos debates políticos do setor.

A este propósito, interessante notar que antes das prolíficas manifestações populares que envolveram o país nos últimos meses, não se viam os médicos saírem às ruas para protestar por avanços na saúde pública brasileira. Mas alto lá, não sejamos injustos: não só os médicos, mas também outros grupos historicamente conformistas, tiveram surpreendentes surtos de militância nos últimos meses, embelezando a estampa das manifestações que tomaram as ruas do Brasil. A praça é do povo, como o céu é do Condor, mas doravante há de se delimitar uma área VIP, com sombra e água fresca pra quem não está acostumado ao calor de 40° do sol de todos os dias.

É cômodo pegar o bonde já em movimento: às vezes, não se trata de lutar por melhores condições de vida para todos, mas de garantir a manutenção da reserva de mercado já existente. Não há novidades; é postura típica dos caras-pálidas das superiores castas tupiniquins, de que a maioria dos médicos é uma pequena parte, não o todo.

“Minha terra tem palmares 
onde gorjeia o mar (...)
Minha terra tem mais ouro
Minha terra tem mais terra”
(Oswald de Andrade)

O todo é a mesma elite, por exemplo, que se diz vítima de preconceito porque não se enquadra em nenhuma cota instituída pelo governo. A reclamação, a bem da verdade, tem fundamento: quem sempre teve a cota total dos privilégios, públicos e privados, não vai mesmo gostar de dividir o espaço com essa gente pobre, negra e deficiente que se cansou de Palmares e quer tomar o Brasil. E imagina quando, das universidades públicas brasileiras, começarem a sair bacharéis com cara de empregada doméstica, com cara de escravo, com cara de cubano, com cara de Brasil. Você sabe com quem está falando? Vai ficar mais difícil saber.

Pensando bem, solidarizemo-nos com as alvas criaturas que terão seus empregos usurpados pelos doutores estrangeiros. Tadinhos! Deve ser mesmo muito difícil ser “bem nascido” num país excludente como o nosso. São as lamúrias de uma elite que pensa que é dona do Mundo – e do Brasil, por extensão.

Hendye Gracielle
(tentando aprender com Oswald de Andrade a não ter medo de polêmica)