terça-feira, 12 de maio de 2015

Crônica de aniversário



“Agora eu era o rei, era o bedel e era também juiz
E pela minha lei, a gente era obrigada a ser feliz
E você era a princesa que eu fiz coroar
E era tão linda de se admirar que andava nua pelo meu país”
(Chico Buarque – João e Maria)

Porque sinto como meus todos os seus dias antes de mim, assim como são suas todas as minhas horas antes de sua vinda; por isso celebro, como meu, o seu aniversário.

Foram meus todos os seus minutos, todas as suas dores, todas as lágrimas, todas as quedas, todas as conversas, todas as alegrias, todas as frustrações, todas as banalidades, todas as provações, todas as fantasias, todas as decisões, todas as noites em claro, todas as idas e vindas e voltas e reviravoltas dos caminhos que você percorreu, porque levaram ao irremediável momento em que nossa vida se tocou. Foram meus os seus rumos, foram seus os meus destinos, porque conspiraram sorrateiramente para que nossa vida se complementasse (e se complicasse) tanto e tão irresistivelmente e tão deliciosamente, no tempo em que nós nos apaixonamos.


Celebrar, portanto, não os seus quarenta anos, mas os nossos, posto que são meus todos os dias, todos os meses, todos os anos de sua existência.

Festejar hoje a alegria do amor cultivado com o mesmo desvelo com que se cultivam as flores raras, belas, levemente tóxicas e ainda não nominadas.

E desejar ainda mais.

Aos cinquenta, a bem-aventurança de um refúgio todo nosso: uma casinha com fotos minhas, suas, nossas; seus livros de teatro, meus DVDs em ordem alfabética, sua plantinha frutífera, minha TV alaranjada, sua forma de bolo, minha pasta de recortes, sua mania de perfumes, minha mania de trocar de escova de dentes... 

Aos sessenta, os deslumbramentos e estupefações de um mundo repentinamente acolhedor, que descobriremos lado a lado! (E banhos de chuva, e fotografias insólitas, e cochilos na rede ao entardecer...)

Aos setenta, amar os ocasos, as madrugadas, as alvoradas, as astúcias de uma vida reinventada, os inevitáveis adeuses e os desejáveis regressos. (E filmes velhos, e livros novos, e vinhos raros.)

Aos oitenta, redescobrir o encantamento de nós mesmas, no alvorecer de uma nova estação. (E presentes inesperados, e flores sem motivo, e beijos roubados.)

Aos noventa, lembrar contigo todos os momentos, a vida possível e a que não foi, o tempo vivido e o sonhado... (E poemas trocados, e desejos revelados, e juras de amor.)

Aos cem, a delicadeza do carinho antigo e sempre novo. E quem sabe a coerência suprema do simultâneo desaparecimento: cessado o tempo de coexistir, possamos juntas “desexistir”.

 “Vem, me dê a mão
 A gente agora já não tinha medo
No tempo da maldade acho que a gente nem tinha nascido”

Todas as horas serão nossas; todas as horas e o depois.

Hendye Gracielle
12 de maio de 2015
 
(Desenhos de Gervasio Troche)