quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Breve relato das derradeiras emoções do ano que findou
- ou: O Natal da Cidade foi de lascar!!!


Fico indignado quando dizem que cachorro gosta de osso.
Só dão osso ao cachorro, depois dizem que ele só gosta de osso.
Ele adora comida como todo mundo.
Bote um osso e bote um filé para ver qual é que ele escolhe.
Não estão deixando a juventude brasileira entrar em contato com o filé.
Só estão lhe dando osso...”

(Ariano Suassuna, em aula-espetáculo a que assisti em Barbacena,
e em várias entrevistas e palestras que proferiu pelo país,
inclusive em Vitória da Conquista)

Uma tocante homenagem a um dos maiores intelectuais brasileiros, infelizmente recém ido para o céu – Ariano Suassuna –, com direito a instalações artísticas, projeção integral de palestra, murais de xilogravura, bonecos gigantes, exposição de livros.

Uma celebração de manifestações tradicionais, como Terno de Reis, e o incentivo a talentos locais, com concurso de cantores (“Por isso é que eu canto”) e abertura do palco principal para bandas e artistas da cidade.

Tudo isso em espaços públicos – praças e Centro de Cultura Glauber Rocha –, gratuito e aberto para a população, sem área vip, camarote ou cercadinho, só um espaço com cadeiras para quem quiser se sentar, e uma imensa área aberta pra gente ser feliz!

Bom, né? Agora acelera: uma festa da música com os melhores e mais incríveis/competentes/consagrados/inspiradores/delícias/supimpas artistas da música popular brasileira de todos os tempos, inclusive dos tempos de agora – em 2014 foram Paulinho da Viola, Zeca Baleiro, Fafá de Belém, João Bosco, Toquinho, Teatro Mágico, Ana Cañas, Yamandu Costa, Pereira da Viola, Marcos Valle, Roberto Menescal.

Isso tudo eu vi, com esses lindos olhos que a terra demorará a comer, no “Natal da Cidade”, evento anual que acontece em Vitória da Conquista/BA, e no qual, sempre que possível, eu “tô garrada”.

Desenho: Gevasio Troche


A visita ao Memorial, onde estava sendo homenageado Ariano Suassuna, é o início da minha incursão cultural de fim de ano. Ariano Suassuna dispensa comentários, né não? O espaço foi decorado com várias referências às obras e ideias do escritor, e abrigava também o já tradicional concurso de presépios. Eram dez presépios, alguns bastante inusitados, feitos com os mais variados materiais e concepções, dentre os quais uma oca de madeira, toda fechada, apenas com um grande “buraco de fechadura”, através do qual se entrevia a cena natalina; outro era um surpreendente set de cinema, no qual estava sendo filmado o nascimento de Jesus (salve a terra de Glauber Rocha!).

Agora os shows... Ixe (voltei de lá com esse “ixe”), ixe, os shows foram de lascar – que é o mesmo que “da porra” na Bahia, e “do caralho” no resto do Brasil, mas caralho e porra eu não gosto de escrever. Os shows, como ia dizendo, foram de lascar, mas vou falar só um pouquinho, só de alguns, pra não cansar.

Os shows... Teve samba, o melhor do samba, com Paulinho da Viola e suas lindezas: Pecado Capital, Coração Leviano, Foi um rio que passou em minha vida... “Há muito tempo eu escuto esse papo furado dizendo que o samba acabou / Só se foi quando o dia clareou”; essa ele não cantou, mas eu cantei, mentalmente, feliz da vida porque o samba existe e estava ali, ao meu alcance.

E teve a mágica do Teatro Mágico, provando que jovem gosta é de filé, se derem filé pra ele. Tantos garotos e garotas (e eu, essa garota de meia idade) cantando a tolerância, o amor, a amizade, o respeito, a luta por um mundo melhor; tudo sem pieguice, sem mesmice, sem mimimi, só com arte, figurinos, bailarinas, guitarras elétricas e um letrista fodástico. O Teatro Mágico é mesmo um espetáculo!

Fotografia: Hendye Gracielle

Teve mais. Dentro da minha cabeça, teve até revelações literárias... Foi no show de Marcos Valle. Tô ali ouvindo aqueles acordes complexos para letras que parecem tão simples, me deliciando, e num estalo entendo que a crônica é a bossa nova da literatura, ou que a bossa nova é a crônica da música, sei lá. Tudo bem, é possível que outros já tenham chegado a essa conclusão, mas para mim ela aconteceu ali, em pé no meio do público, ouvindo Marcos Valle e Roberto Menescal tocarem “O Barquinho” e “Samba de Verão”. É o cotidiano, a singeleza, a prosa pequena do dia-a-dia, a poesia descalça, despretensiosa, brincando de contar, de cantar. A crônica não tem o fôlego humanista dos grandes romances, assim como a bossa nova não tem as letras profundas da MPB, os sofrimentos dos boleros, os rasgos de voz das grandes cantoras, a rebeldia necessária do Tropicalismo. É simples, mas tocante, como um texto de Rubem Braga, um barquinho à deriva, um dia de sol na praia. Não sei se o mar vai virar sertão, mas ali naquele show o sertão baiano virou mar!

De tanta coisa que eu ainda poderia contar (mas calma, que não vou), teve principalmente o show de Toquinho, na noite de Natal. Esse show, o último do evento, resume bem o encantamento que senti nestes dias de festa e celebração (música boa emociona, né!?): foi encantador ver crianças na plateia cantando empolgadíssimas as suas músicas infantis, como “O Pato”, “A Casa”, “Aquarela”; foi emocionante ouvir a melodia requintada e a letra tão bonita de “O Caderno”, e perceber que se pode enxergar poesia e beleza em objetos prosaicos, e deles fazer metáfora de um curso de vida; foi uma delícia ouvir as grandes parcerias com Jobim, Chico, Vinícius...

No meio do show, Toquinho solando no violão, executando o instrumental de várias músicas, de repente começo a reconhecer a música clássica de Bach – “Jesus, alegria dos homens” -, que foi inacreditavelmente emendada nos acordes de “Asa Branca”, de Gonzagão. Encontro sublime do erudito com o cancioneiro, do clássico com o popular, do universal com o tradicional... Véi, isso é lindo! (Especialmente em épocas de veleidades separatistas de elites pseudo-requintadas, que adoram colecionar Rolex, tomar Chandon e descer até o chão-chão-chão em camarotes “all inclusive”...)


Uma imersão revigorante, esse meu final de ano na Bahia. E uma vontade imensa de que a arte encante muitas e muitas pessoas, cada vez mais, cada vez melhor. Além do “amor-saúde-paz-o-resto-a-gente-corre-atrás” de praxe, isto o que eu desejo em 2015: um ano repleto de arte e cultura; menos osso e mais filé para todos nós. 


Desenho: você já sabe