terça-feira, 17 de dezembro de 2013

RÉQUIEM PARA FLORES - Pequena crônica de adeus

"– A vida, senhor Visconde, é um pisca-pisca. A gente nasce, isto é, começa a piscar. Quem pára de piscar chegou ao fim, morreu. Piscar é abrir e fechar os olhos – viver é isso. (...). Um rosário de piscados. Cada pisco é um dia. (...) e por fim pisca pela última vez e morre.”
(Monteiro Lobato)



O fato mais assombroso da vida é viver e, de repente, não viver mais. A pessoa existir durante a vida inteira e, num segundo, desexistir. E esse segundo ser pra sempre. E o “pra sempre” ser igual a “nunca mais”.

A morte é mesmo o paradoxo da vida. Seu oposto e sua continuação. Seu natural e sua negação. Mesmo certa para todos os viventes, quando chega, com ou sem prévio aviso, nunca deixa de surpreender. É porque se morrerá um dia que se dá valor à vida. E quando uns morrem é que outros aprendem a viver.

A astronomia nos ensina que continuamos a perceber o brilho das estrelas mesmo após elas já terem desaparecido do universo. E que quanto maior a estrela, menor seu tempo de existência. A astronomia nos ensina para a vida.

Embora dispersos pelo mapa, estamos todos juntos no cais de partida, acenando com a mão as mais sentidas despedidas ao navio que parte levando uma pessoa que aprendemos a amar. Felizes pelo (breve) encontro, angustiados pela (incompreensível) partida, inseguros, mas acreditando que nenhum navio parte sem rumo, nenhuma pessoa parte sem explicação.

Por isso temos braços longos para os adeuses (...)
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.
(Vinicius de Moraes)

Adeus, Lívia Flores. Adeus, Lívia Estrelas.

Até quem sabe. A Deus.

Fiquemos em paz.


Para meu Tio querido. 

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

É bom quando a elite mostra sua cara



É bom quando a elite brasileira mostra a sua cara. Nos episódios mais recentes da badalada cena política nacional, a elite brasileira assumiu a alcunha de Classe Médica. E esteve muito bem representada pelos indivíduos que foram aos aeroportos hostilizar os novos médicos entrantes no país. Não há que se falar numa “pequena parte”; foi uma amostra representativa da classe representada, assim como os políticos que ascendem a Brasília são uma amostra representativa, em seus laivos de usura, dos valores arraigados na população que eles representam (sim: nós, o povo).

“O todo sem a parte não é todo
A parte sem o todo não é parte
Mas se a parte o faz todo, sendo parte
Não se diga que é parte, sendo todo
(Gregório de Matos)

Ficou difícil? Assim: Brasília é o nosso espelho; os habitantes de seus gabinetes são uma parte do todo que é a nossa população, e espelham os valores médios (ou medíocres) de nossa própria sociedade. Assim também: o jornalista que escreveu sobre “médica com cara de empregada doméstica”, os senhores de branco que chamaram de escravos os médicos cubanos, e outros exemplos ad infinitum, são um espelho da elite – branca, rica e heterossexual (fora de casa, pelo menos) – que sempre ocupou os espaços de prestígio na sociedade. O exercício da medicina é um desses espaços, mas há outros, como o dos industriais, grandes empreiteiros, latifundiários, magistrados... Ousassem incomodar a uma dessas classes, e veríamos cenas semelhantes, diferindo apenas o traje branco pelo de terno e gravata, ou pela bota e espora. Ou talvez com um pouco mais de discrição: não dariam a face a tapa, usariam para tanto lobistas de bastidores. Por isso é que é bom quando a elite brasileira mostra a sua cara.

A falta de recursos para o sistema público pode ser o principal fator do problema da saúde no Brasil (ou melhor, o dinheiro é muito, porém muitas mais são as torneiras de desvio da fonte até a foz). Isso, entretanto, não deveria eximir os médicos de bem exercerem o seu mister. Um médico recém-formado não pode dedicar dois anos de sua promissora vida profissional para atuar compulsoriamente no SUS (sendo remunerado para isso, entenda-se bem)? Não pode perder o brilho de seu status passando alguns anos no insosso interior do Brasil, a não ser por um salário que exorbite do padrão razoável de remuneração profissional? Não se pode adiar por algum tempo o rentável retorno do investimento que papai fez nas mensalidades das faculdades privadas, ou nos cursinhos preparatórios para as faculdades públicas? Talvez o problema seja a concepção da medicina como um investimento, não como um compromisso ou vocação.

“A praça é do povo / como o céu é do Condor.
É o antro onde a liberdade / Cria águias em seu calor!”
(Castro Alves)

Quando a Medida Provisória 621/2013, que institui o Programa Mais Médicos, ainda estava em discussão, um representante do Conselho Regional de Medicina foi ao jornal local de nossa pequena cidade vituperar contra a proposta. Foram concedidas todas as atenções aos argumentos do distinto senhor; questionado, entretanto, sobre quais seriam as alternativas para os problemas que deram origem à norma, não soube dizer. Ajustadas as proporções, creio que ainda se aguardam as sensatas contribuições que o Conselho Federal de Medicina possa dar aos debates políticos do setor.

A este propósito, interessante notar que antes das prolíficas manifestações populares que envolveram o país nos últimos meses, não se viam os médicos saírem às ruas para protestar por avanços na saúde pública brasileira. Mas alto lá, não sejamos injustos: não só os médicos, mas também outros grupos historicamente conformistas, tiveram surpreendentes surtos de militância nos últimos meses, embelezando a estampa das manifestações que tomaram as ruas do Brasil. A praça é do povo, como o céu é do Condor, mas doravante há de se delimitar uma área VIP, com sombra e água fresca pra quem não está acostumado ao calor de 40° do sol de todos os dias.

É cômodo pegar o bonde já em movimento: às vezes, não se trata de lutar por melhores condições de vida para todos, mas de garantir a manutenção da reserva de mercado já existente. Não há novidades; é postura típica dos caras-pálidas das superiores castas tupiniquins, de que a maioria dos médicos é uma pequena parte, não o todo.

“Minha terra tem palmares 
onde gorjeia o mar (...)
Minha terra tem mais ouro
Minha terra tem mais terra”
(Oswald de Andrade)

O todo é a mesma elite, por exemplo, que se diz vítima de preconceito porque não se enquadra em nenhuma cota instituída pelo governo. A reclamação, a bem da verdade, tem fundamento: quem sempre teve a cota total dos privilégios, públicos e privados, não vai mesmo gostar de dividir o espaço com essa gente pobre, negra e deficiente que se cansou de Palmares e quer tomar o Brasil. E imagina quando, das universidades públicas brasileiras, começarem a sair bacharéis com cara de empregada doméstica, com cara de escravo, com cara de cubano, com cara de Brasil. Você sabe com quem está falando? Vai ficar mais difícil saber.

Pensando bem, solidarizemo-nos com as alvas criaturas que terão seus empregos usurpados pelos doutores estrangeiros. Tadinhos! Deve ser mesmo muito difícil ser “bem nascido” num país excludente como o nosso. São as lamúrias de uma elite que pensa que é dona do Mundo – e do Brasil, por extensão.

Hendye Gracielle
(tentando aprender com Oswald de Andrade a não ter medo de polêmica)

sábado, 27 de julho de 2013

Crônica de Viagem: Paraty é uma festa!

(Desenhos surrupiados de Troche)

A gente conhece os vícios de uma pessoa pela sua maneira de se comunicar com Deus. Já contei em crônica anterior o efeito do tempo em que fui quase uma workaholic, e me surpreendi fazendo uma oração burocrática, neste estilo: “Prezado Deus, favor proteger toda a minha família. Gentileza relevar as falhas, que serão oportunamente retificadas. Certa de sua compreensão, desde já agradeço, amém”.

Na viagem que fizemos neste mês a Paraty, eu e meus amigos percorremos mais de dois mil quilômetros de carro, revezando-nos na direção. Saí de Montes Claros dirigindo, e na primeira parada foi a vez do Macho Jurubeba (que vocês já conhecem de linhas passadas) assumir o volante. Antes de dar a partida, não ficamos surpresos ao vê-lo fazer o sinal da cruz, mas não esperávamos pela concisa oração que ouvimos em seguida: “#PartiuComDeus”! Isto mesmo, com todas as letras e caracteres: “hashtag-partiu-com-Deus”! Quanta modernidade para um Macho outrora Jurubeba de raiz! Descobrimos então que nosso amigo tornara-se um adicto das redes sociais. As gargalhadas inundaram o carro, mas na hora me veio uma dúvida, que não verbalizei para não ser também alvo das veementes chacotas dos amigos: será que Deus curtiu?

Chegando a Paraty, pegamos uma estrada vicinal que levava à Vila de Corisco, onde nos hospedamos. Após transpor 5 km e 27 quebra-molas – alguém se deu ao trabalho de contá‑los – chegamos à Pousada, que logo apelidamos de “Casa da Bruxa”, em decorrência de seu aspecto ecológico-esotérico-filme de terror. Passamos pela recepção e a mocinha nos explicou que a entrada para nosso chalé era pela rodovia mesmo; a trilha interna estava intransitável, porque não dera tempo de limpá-la (fizemos reserva com três meses de antecedência, mas achamos melhor não abordar este detalhe). Perguntamos então qual era a chave para abrir a garagem, ao que a recepcionista respondeu: “Ah, é só meter a mão e abrir”. Opa, agora sim nós nos sentimos efetivamente no estado do Rio de Janeiro, né não, malandragem?

Metemos a mão no portão, estacionamos, entramos no chalé, e logo ao chegar observamos várias velas sobre a mesa, prontas para o uso. Primeiro achamos que se tratava dos preparativos para algum ritual macabro; mais tarde a energia começou a oscilar, e entendemos que as velas estavam ali para serem a nossa luz, caso a elétrica faltasse. Felizmente nada disso aconteceu – nem a falta de energia, nem o ritual macabro -, e as velas permaneceram intocadas, prontas para assustar as próximas vítimas, digo, os próximos hóspedes incautos.

Considerando que um de nós ainda não conhecia o mar, programamos um passeio de barco para o dia seguinte. A bordo da escuna, passamos a tarde toda só na alegria: cerveja gelada, comida gostosa, música ao vivo, ilhas paradisíacas (todas particulares, que pudemos ver, mas não tocar!), mergulho em alto mar. “Mas essa água é muito salgada!”, exclamou o meu amigo para quem o oceano era inédito! Mas tudo – inclusive a inocência – tem um preço! No final da tarde chega a conta para pagarmos, e cada um de nós saca confiante o seu cartão de crédito, milagrosa máquina do tempo que transforma as dívidas de amanhã nas delícias de hoje! Mas há dias em que o milagre falha: descobrimos que o barco não aceitava cartão. Na empolgação etílica em que nos encontrávamos, tentamos resolver discretamente a questão: um gritou que tinha trazido onze reais e cinquenta centavos, a outra disse que ia contar as moedinhas da bolsa, a terceira se ofereceu para lavar os pratos, soluções bastante criativas para se pagar uma conta de três dígitos! As coisas se resolveram quando voltamos ao cais, e propusemos ir ao banco sacar dinheiro, o que a dona do barco só aceitou caso um dos tripulantes nos acompanhasse até lá. Porque “a gente confia, mas não custa prevenir”. Concordamos inteiramente, com carinha de pessoas honestas (que somos) preocupadas com as vigarices que assolam o país.

Para superar a pecha de golpistas acidentais, vestimos a carapuça de “meio intelectuais meio de esquerda” e fomos para a FLIP – Festa Literária Internacional de Paraty (nossa amiga Coração Gelado diria que fomos “fingir cultura”, mas isso seria pura inveja por ela não estar lá). As Festas Literárias são lugares interessantes porque propiciam que estejamos todos ocupando os mesmos espaços e celebrando em comunhão: nós, apaixonados por literatura; os autores de sucesso, como Ferreira Gullar, Xico Sá, Nicolas Behr e outros que perambularam por lá; e artistas anônimos, que ficam pelas ruas tocando seus instrumentos, vendendo seus livretos, declamando poemas e cantando, respeitosamente, as mulheres. Numa madrugada improvisamos um sarau na praça – na verdade foi uma algazarra de vinhos bebidos no gargalo e poemas declamados pelas metades, mas vamos chamar de sarau, que é pra elevar o espírito. Não sei se atraídos pelo lirismo dos versos ou pela euforia do álcool, alguns poetas vieram ter conosco. Educada que é, nossa camarada Madê foi delicadamente cumprimentar um deles, “Muito prazer”, ao que ele respondeu, “prazer ainda não tivemos, meu bem”. Ênfase no “ainda”, tratava-se de um poeta esperançoso. Outro deles, inquirido sobre suas atividades habituais, declarou que escrevia poemas, ilustrava livros e fazia filhos; deve ter sido bastante frustrante que nenhuma de nós tenha se interessado em experimentar as habilidades que ele, com tanta convicção, afirmava ter.

Mas nem só de esculhambação se faz uma viagem literária. Houve também momentos de tietagem erudita em nossas aventuras. Conseguimos autógrafos do Milton Hatoum (mediante promessas de favores sexuais para uma das recepcionistas) e nosso amigo viciado em internet tirou foto e fez check-in na Adriana Calcanhotto – virtualmente falando, é claro! A única tristeza que guardo é a de que os nossos planos infalíveis de levar a Maria Bethânia ou o Xico Sá para um jantarzinho em nosso chalé tenham falhado. É pena, mas fica como expectativa para uma próxima edição da FLIP. Nossos delírios não conhecem o limite do improvável: Paraty é uma festa sem fim!

Hendye Gracielle

(A FLIP é uma loucura!)

***
Leia também a outra parte –  em outro estilo – de minhas aventuras de julho: “Viagem a São Paulo – relato épico de nossos poucos dias”.

A expressão “Meio intelectual meio de esquerda” está na crônica “Bar ruim é lindo, bicho”, do Antônio Prata, o cronista de nossa geração. Leia na pág. 30 do livro homônimo, ou então aqui: http://blogs.estadao.com.br/antonio-prata/bar-ruim-e-lindo-bicho-1/ . 

Abraços efusivos aos meus leitores invisíveis!

terça-feira, 23 de julho de 2013

Viagem a São Paulo – relato épico de nossos poucos dias



Ai de ti, Copacabana, porque eu já fiz o sinal bem claro de que é chegada a véspera de teu dia, e tu não viste. (...)

Assim qual escuro alfanje a nadadeira dos imensos cações passará ao lado de tuas antenas de televisão; porém muitos peixes morrerão por se banharem no uísque falsificado de teus bares. (...)

Canta a tua última canção, Copacabana!

(Rubem Braga – crônica Ai de ti, Copacabana)

(Fotografia de Bruno Lima)

Ai de mim, que não conheço Copacabana. E fui encontrar Rubem Braga em São Paulo – cidade antípoda de seu lirismo crônico –, pelo acaso de um passeio literário, escondido no Museu da Língua Portuguesa, em exposição que forrou de jornais antigos o primeiro andar do prédio moderno, e forrou de acalantos novos o primeiro vão de meu antiquado coração.

E deixei de conhecer o sol e o mar do Rio de Janeiro, e troquei-o pela oportunidade de banhar-me na garoa cinzenta de pecados e prestígios da cidade de São Paulo; e mesmo tomando o caminho contrário de seu habitat, acabei encontrando o cronista, e revi-o em vídeos, fotografias, livros e sonhos. 

E mesmo tendo partido para tão longe, ainda assim não pude fugir de mim mesma. E afastando-me mil quilômetros de meu cotidiano norte-mineiro, acabei por voltar a Montes Claros, numa crônica do velho Braga, por acaso folheada nos livros em exposição. E esta crônica citava também Cachoeiro do Itapemirim, terra natal do escritor. E emocionei-me de que estivéssemos ali todos juntos, eu, minha cidade, o cronista, sua cidade, e São Paulo, que foi o porto agregador dos rios de concreto desta viagem sentimental.

E saindo do prédio, e voltando à rua, e deslumbrada pela altivez da Estação da Luz, e querendo atravessá-la de ponta a ponta, entrei pela porta da opulência, defronte ao castelo encantado da Pinacoteca do Estado, e saí inadvertidamente pela porta da decadência; e, não sei se por distração ou por ingenuidade, não reconheci que havia ali mulheres de vida amarga e corpos postos em liquidação. Ai de mim, que nada conheço desta vida.

E indiferente às agruras desses habitantes submersos em fumaça, confortei‑me na companhia de pessoas queridas de minha vida, e vagamos pelas ruas do centro da cidade, em noite quase deserta, fascinados pelas construções dos primeiros séculos de sua existência; e sambamos pelos bares e botequins da Vila Madalena, em cuja boemia mergulhamos intrepidamente; e nos perdemos pelas avenidas labirínticas e viadutos medonhos; e perambulamos pelas vias subterrâneas de trilhos e estações, por prestigiados museus e livrarias da Avenida Paulista, pela metrópole hipnotizante, com seus edifícios que tocam o céu e seus miseráveis ao rés-do-chão.

Ai de ti, cidade de São Paulo, cosmópole deslumbrante de infortúnios e iniquidades e contradições; e ai de mim, porque me fascinas e me comoves ao infinito.

Hendye Gracielle
(Desenho de Gevasio Troche)
PS.: Na próxima semana, "Viagem a Paraty - relato lúdico de nossos poucos dias".

domingo, 28 de abril de 2013

Por que participo? - Crônica da luta cotidiana


“Faz escuro mas eu canto"
(Thiago de Mello)



Não tenho a ilusão de ver os meus ideais triunfarem neste mundo de indelicadezas e absurdos. Não tenho ilusões, entretanto luto.

Se não se pode consertar o mundo, pode-se mudá-lo. Se não se pode mudar o mundo, pode-se melhorá-lo. Se não se pode melhorar o mundo, pode-se melhorar a si mesmo. Se nada disso for possível, pode-se ao menos tentar. Tentar já é mais que não tentar, sendo, por si só, uma pequena vitória.

São as pequenas vitórias que têm tornado o mundo possível. Para todos, embora resultem do esforço de poucos. Impedir alguma injustiça é uma pequena vitória. Colaborar para alguma mudança é uma pequena vitória. Evitar um mal maior é uma pequena vitória. Respeitar e fazer‑se respeitar são pequenas vitórias. Agir conforme os valores nos quais se acredita é uma pequena vitória, e pode ser a maior delas.

Minha luta é coletiva. Minha responsabilidade, entretanto, é individual. Meu compromisso maior é comigo mesma: com meus próprios valores.

Meus valores de respeito à vida não me permitem ignorar o fato de que todos os dias indivíduos morrem e se acidentam a serviço da empresa em que confortavelmente trabalho. Meus valores de justiça social não me permitem aceitar que muito dinheiro tem sido dividido entre poucos, que no mundo nada criaram e ao mundo nada legarão. Meus valores de generosidade não me permitem aceitar que um serviço essencial à sobrevivência humana seja prestado com cada vez menos qualidade. Meus valores de respeito à dignidade humana não me permitem ficar indiferente sabendo que há colegas e ex-colegas sendo prejudicados; eu me importo, ainda que não seja comigo. Meus valores de solidariedade não me permitem deixar que poucos lutem, sem a minha colaboração, por uma causa que é de todos.

Por isso eu participo desta e de outras lutas. Participo porque, para mim, não existe outra opção possível que não seja fazer o bem. E fazer o bem é, também e sobretudo, não se omitir.

Para que o mal triunfe, basta que as
pessoas de bem permaneçam inertes.
(Edmund Burke)

Este poder! (Pra variar a ilustração, charge do Henfil)

domingo, 3 de março de 2013

O mar à noite (A costura do mundo)




Um mês sem crônica nova deveria render algum assunto, certo? Afinal de contas, foram férias em Tiradentes, fim de semana em Belo Horizonte, rocambole em Lagoa Dourada e carnaval em Salvador. Vários dias de viagem, e chegando em casa é que descubro o mote para a crônica:

- Ela, esfregando os olhos: “acho que coloquei uma das lentes pelo avesso.”
- Eu, engraçadinha: “Por que, tá vendo a etiqueta?”
- Ela, metafísica: “Tô vendo a costura... a costura do mundo”.

Cecília Meireles escreveu uma crônica que diferencia o turista do viajante. A poeta afirma-se viajante. Nada de fotografias desembestadas, guias verborrágicos, pontos de visitação obrigatória, 5 continentes em 3 dias – tudo isso é coisa de turista. O turista faz um apressado passeio pela superfície. O viajante calmamente se aprofunda. O prazer do viajante é a contemplação. Ver a costura do mundo, daquele pedaço de mundo novo, que é o destino da viagem.

Tem gente que é turista em qualquer lugar do planeta, até em casa. Tem gente que é eterno viajante. Gosto de me imaginar viajante, embora seja turista de carteirinha, máquina fotográfica dependurada no pescoço, mochila nas costas, guia quatro-rodas sempre à mão. Sou turista, admito, mas tenho meus momentos de viajante, de desejar sentir os lugares, mais que visitá-los; de querer me integrar à cidade como se eu fosse um dos seus. Às vezes dou sorte: numa breve coincidência, num ligeiro acaso, numa oportunidade fugaz, é possível transpor o tecido da cidade, esgueirar-se pela malha do lugar, chegar ao avesso, ver a costura do mundo. Parece complicado, mas sói acontecer numa breve sensação, num comentário, em algo que por acaso se ouve ou se vê. Por exemplo, em Salvador.

Primeiro dia de viagem, éramos quatro amigas sentadas na última mesa da ponta da praia. A moça da barraca, ao final do dia inteiro de trabalho, já de tardezinha, não quis me vender uma água de coco. Reparando em sua expressão, suspeitamos que o motivo era preguiça de ir buscar o coco no bar para o qual trabalhava, que ficava relativamente longe de nossa mesa. Perguntamos se era esse o motivo, ela sorrindo confirmou: era preguiça mesmo. Sorrimos também, e não pudemos nos zangar com a situação. Enxergamos nisso a costura do lugar, a trama daquele mundo que estávamos visitando – a Bahia de uma preguiça gostosa que não tem vergonha de se revelar.

Mais tarde, vimos o sol se pôr nesta mesma praia, já quase deserta. Depois a noite caiu rápido, no local não havia nenhuma luz exceto a da lua e das estrelas. Em vez de irmos embora, entramos novamente na água e vivenciamos o passeio pelo avesso, com a grata surpresa de um prazer inesperado. A água morna, as ondas mansas, o mar despovoado e de repente todo nosso!

Desconfio que só porque ousamos deixar de ser turistas em Salvador é que o mar teve a generosidade de nos revelar seus caprichos insuspeitos e suas delícias noturnas. Aquela ponta de praia era o ponto extremo do nosso velho mundo, dali em diante a viagem começava, o mundo era outro, novo e encharcado, no qual mergulhamos pra que a água salgada molhasse em nós tudo o que fosse corpo. Aí a água do mar foi além: saímos com a alma lavada. 

Essas e outras as boas lembranças da viagem a Salvador.

Hendye Gracielle


domingo, 3 de fevereiro de 2013

Quando a gente chega numa certa idade...




Meu amigo ia dizendo, ao me ouvir reclamar da balança: “Quando a gente chega numa certa idade...”. Interrompi-o imediatamente!  Nem sei exatamente qual seria a constatação ou o conselho, mas eu não admito, sob nenhuma circunstância, que me incluam nessa faixa etária periclitante, que é a tal da CERTA IDADE. E sei que “a gente” foi só uma forma polida de dizer “você”, porque o meu amigo é um cavalheiro, apesar deste deslize acachapante.

Alto lá, meu amigo! Se me dizem que eu estou na IDADE CERTA, pode até ser que eu aceite, ainda assim com ressalvas – sempre aparece algum engraçadinho para fazer aquela pausa misteriosa (misteriosamente cretina) e, em seguida, complementar a frase com uma piada irritante. Imagina se me saem com algo como “idade certa pra arrumar um marido”? Eu, ein! O mais seguro é não colocar as palavras “IDADE” e “CERTA” na mesma conversa, seja qual for a ordem dos fatores.

Se IDADE CERTA pode ser ruim, CERTA IDADE é sempre pior. UMA CERTA IDADE é a idade das trevas. Essa CERTA IDADE não se conta em anos, mas em quantidade de vezes que se vai ao médico, ao bingo ou às profundezas do ser. Dizer que fulano chegou NUMA CERTA IDADE, é dizer que neste exato momento ele está lascado, independente de há quantos anos ele tenha nascido.

Não é simples questão de cronologia. Absolutamente! Conheço pessoas com várias décadas de existência, mas que não chegaram nessa CERTA IDADE. E também o contrário, pessoas para quem a CERTA IDADE chegou espantosamente cedo, antes mesmo de aprenderem todos os 576 significados da palavra relacionamento – incluindo aquele que é sinônimo de “pensar mil vezes antes de falar”.

Tentar explicar qualquer infortúnio pelo fato de ter chegado a UMA CERTA IDADE é o mesmo que atribuir qualquer mau humor à TPM. Se o rapaz está nervoso, é estresse do trabalho, do trânsito ou peso das responsabilidades mundanas. Se a moça está nervosa, é TPM. Aprendam, marmanjos insensíveis, que há palavras que são verdadeiras granadas, cujo manuseio deve ser estudado friamente, sob pena de se perder um braço (ou outro membro mais estratégico) ao empregá-las erroneamente. Temeridade máxima: colocando TPM e CERTA IDADE na mesma frase, corre-se o risco de perder a própria vida.

Quanto ao meu amigo do início da história, quase sempre delicado, mas que pronunciou aquela frase tão infeliz, peço desculpas se me excedi na reprimenda. É que cheguei numa certa idade em que já não levo desaforo pra casa...

Hendye Gracielle

sábado, 19 de janeiro de 2013

Carta do Jorge - Minha paixão foi por um triz




Cara Hendye, amiga tão distante e tão querida,

Apenas hoje, meados de janeiro, escrevo a carta que lhe prometi para o iniciozinho do ano, tão logo cessasse a pirotecnia histérica que marca as transições em geral. As luzes de 2012 se apagaram, os ventos de 2013 já sopram quentes, e apenas agora me senti disposto a escrever-lhe. Isso comprova que, apesar das promessas natalinas de sermos pessoas melhores, o novo ano em nada altera o nosso espírito procrastinador, nossa mania brasileiríssima e humaníssima de adiar tudo que for possível, e às vezes o impossível também.

Nem bem o ano se iniciou, andei cansado de estar só neste mundo invisível. Pra passar o tempo, e arrumar alguma diversão, inventei para mim uma paixão. Pensando que seria uma experiência facilitada e amena, quanto me enganei! Fui brincar com o vento, entrei num torvelinho do qual não soube fugir. Breve, mas intenso: apaixonei-me, entreguei-me, fui feliz, e a vida então nos afastou, sem aviso e sem traumas. Fascinante: como um encontro de liberdades que andam soltas pelo cosmos, e em algum ponto de sua trajetória imprevisível acabam se tocando e, logo em seguida, se distanciando, para nunca se cruzarem novamente.

Sendo você minha confidente única – e predileta! –, conto o que se passou entre mim e aquela que enfeitiçou os meus sentidos. Pra tentar explicar (mentira: pra que eu tente compreender) o que aconteceu.

Contando os dias, vejo que nosso encontro foi uma primavera: nenhuma ilusão além. Reparando bem, nossa história foi verso, anverso e avesso – uma eternidade de agora. Haicai escrito de nuvem. Um disco que não virou, eterno lado B de amores impossíveis. Um dia de muitos anos. Um curta-metragem que começasse pelo fim.

Nosso caso foi urdido no silêncio da madrugada.

Logo se acabou: em nota de rodapé, na melancolia displicente de um telefonema, na pressa de um amor do fim dos tempos, na curva do infinito. 

Findou-se, mas deixou em mim a beleza deste encontro de almas, e estou certo de que, mesmo separados, não seremos mais as mesmas criaturas que fôramos antes.

Pelo que conto de minhas incursões sentimentais, você vê que, afinal, não há grandes diferenças entre a minha vida imaginada e essa tal vida real. Essas peraltices amorosas afligem igualmente os corações humanos e aqueles que, como o meu, são feitos apenas de sonho.

Mande notícias suas e deste seu mundo louco, que faz o meu parecer uma inofensiva brincadeira de criança.

Abraço carinhoso,
do sempre seu amigo,

Jorge