Eu
não tenho muita paciência com crianças, por isso me espanta a força com que
esses episódios por elas protagonizados se arraigaram na minha memória
sentimental. Tais momentos são furtivos; somente na distração encontra-se a
leveza necessária para que aconteçam. Pegam-nos de surpresa quando nossas
personas estão desnudadas. Foi o que ocorreu em minha viagem a Paraty, quando
fui visitar a FLIP - Festa Literária Internacional – deste ano. Foi com um
menino de rua que vivi a experiência mais poética da temporada.
Era
tardezinha de sábado, estávamos haurindo os últimos momentos em Paraty, tomando
um caldo verde com torradas em uma mesa de bar nas ruas do Centro Histórico.
Era o ocaso melancólico de nossa incursão cultural. O menino aproximou-se de
nossa mesa e perguntou se podia cantar. “Se você quer cantar, pode cantar”,
respondi. “Mas tem que pagar”, ele redarguiu. Após acertamos o preço, porque
nem mesmo o lirismo escapa às agruras do capital, a criança começou a cantar.
A
cantoria era tão desentoada que imediatamente pedimos que parasse; ele
receberia o acertado para fazer o favor de não cantar. Creio que o canto era
penoso pra todos nós, inclusive pra ele, que pareceu satisfeito em silenciar.
Sentindo-se convidado, sentou-se à nossa mesa e pegou uma torrada. Nesse mesmo
momento eu também comia, e vendo-me molhar minha torrada no meu caldo, com
naturalidade pegou sua torrada e a mergulhou na minha tigela.
Não
foi petulância, não foi grosseria. Foi com a naturalidade de uma criança que vê
algo que parece bom e quer prová-lo; que imita um gesto sem extrapolar-lhe o
sentido. Até as pessoas da mesa ao lado sorriram com a cena. Aquilo me
enterneceu, achei até mesmo generoso de sua parte que ele repartisse comigo
minha própria refeição.
Esse
episódio singelamente marcou minha viagem, e tem acompanhado a narrativa das
demais peripécias da FLIP, feitas a quem pergunta como foi o passeio. Nessas
horas, meus interlocutores ouvem meu relato, mas é pena que não ouçam a trilha
literária que passa na minha cabeça ao falar dessa criança, que na minha
lembrança tem o rosto de tantas outras com quem cruzo nas ruas da cidade:
“Em
casa de menino de rua
O
último a dormir apaga a lua”
(Giovanni
Baffô)
Ao
menino de Paraty dedico essas linhas de memória afetiva e a trilha do ato
final.
***
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