sábado, 28 de julho de 2012

Crônicas da tenra infância – parte 3: em Paraty



Eu não tenho muita paciência com crianças, por isso me espanta a força com que esses episódios por elas protagonizados se arraigaram na minha memória sentimental. Tais momentos são furtivos; somente na distração encontra-se a leveza necessária para que aconteçam. Pegam-nos de surpresa quando nossas personas estão desnudadas. Foi o que ocorreu em minha viagem a Paraty, quando fui visitar a FLIP - Festa Literária Internacional – deste ano. Foi com um menino de rua que vivi a experiência mais poética da temporada.

Era tardezinha de sábado, estávamos haurindo os últimos momentos em Paraty, tomando um caldo verde com torradas em uma mesa de bar nas ruas do Centro Histórico. Era o ocaso melancólico de nossa incursão cultural. O menino aproximou-se de nossa mesa e perguntou se podia cantar. “Se você quer cantar, pode cantar”, respondi. “Mas tem que pagar”, ele redarguiu. Após acertamos o preço, porque nem mesmo o lirismo escapa às agruras do capital, a criança começou a cantar.

A cantoria era tão desentoada que imediatamente pedimos que parasse; ele receberia o acertado para fazer o favor de não cantar. Creio que o canto era penoso pra todos nós, inclusive pra ele, que pareceu satisfeito em silenciar. Sentindo-se convidado, sentou-se à nossa mesa e pegou uma torrada. Nesse mesmo momento eu também comia, e vendo-me molhar minha torrada no meu caldo, com naturalidade pegou sua torrada e a mergulhou na minha tigela.

Não foi petulância, não foi grosseria. Foi com a naturalidade de uma criança que vê algo que parece bom e quer prová-lo; que imita um gesto sem extrapolar-lhe o sentido. Até as pessoas da mesa ao lado sorriram com a cena. Aquilo me enterneceu, achei até mesmo generoso de sua parte que ele repartisse comigo minha própria refeição.



Eu tenho a estranha mania de pensar em poesia nas horas mais insólitas, e quando menos percebo, estou a recitar mentalmente poemas decorados, como uma trilha sonora para as cenas de um filme: a trilha literária para as cenas da vida real. A existência concreta de menino faminto não cabe no poema, mas foi em Drummond – homenageado da FLIP - que busquei o único verso que poderia traduzir o que senti vendo os gestos de inocência daquela criança: “a poesia desse momento inunda minha vida inteira”.

Esse episódio singelamente marcou minha viagem, e tem acompanhado a narrativa das demais peripécias da FLIP, feitas a quem pergunta como foi o passeio. Nessas horas, meus interlocutores ouvem meu relato, mas é pena que não ouçam a trilha literária que passa na minha cabeça ao falar dessa criança, que na minha lembrança tem o rosto de tantas outras com quem cruzo nas ruas da cidade:

“Em casa de menino de rua
O último a dormir apaga a lua”

(Giovanni Baffô)

Ao menino de Paraty dedico essas linhas de memória afetiva e a trilha do ato final.

***

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15 comentários:

  1. Vivendo e aprendendo com as pequenas coisas da vida. Queria ter visto isso... Bjs!!!

    Dalila.

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    1. Ei, coleguinha! Tenho aprendido muito com as "pequenas coisas da vida", e com os "pequenos seres do mundo"...rsrs.

      Beijos!

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  2. Poxa... que lindo! E eu não estava lá pra ver isso...
    Imaginei vc, quando o pediu que parasse de cantar. rsrsrs e quando ele mergulhou a torrada no seu caldo, então... kkkkkkk dei risada! rsrsrs Vc, tão cheia de "frufrus" kkkkkkkkkk Ai, Dindinha... Vc é uma figurinha carimbada!
    Obrigada pelas suas palavras... por dividir com todos nós, seus momentos e memórias!

    Te amo... ♥

    Bjos

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    1. Ei, Tia! Valeu! Obrigada a você pela empolgação de sempre!..rsrs.

      Pois é, eu não quis confessar na crônica, mas eu fiquei torcendo pra ele colocar só a torrada no caldo, e não o dedinho sujinho...rsrs.

      Beijos!

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  3. Poxa, Grá... que bonitinho isso. Realmente, pra quem não gosta de crianças é surpreendente como elas marcam a sua vida. Depois, quero saber mais detalhes dessa viagem bacanosa aí.
    ps.: adorei tia Flávia chamando a atenção para o fato de vc ser bem fresquinha, rsrs!

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    1. Ei, Natinha! Você bem sabe como eu sou mesmo "fresca", ou "cheia de frufru"...rsrs. Mas eu acho que tô melhorando (será?)..rsrs.

      Sobre a viagem, venha qualquer dia ver as fotos e ouvir as histórias da FLIP.

      Valeu! Beijos!

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    2. Natinha, ainda bem que vc conhece a figura... pra não parecer que estou sendo injusta... kkkkkkkk
      bjos linda ♥

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  4. Sempre que leio seus textos fico encantado com a forma como coloca os sentimentos neles. Dá pra ver sua cara pedindo pro menino parar de cantar! Fico até sem jeito de escrever aqui (rsrs) mas não poderia deixar de "registrar meus parabéns".
    Abraço Hendye! Anderson

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    1. Oba! Visita ilustre, com direito a comentário!!!

      Obrigada, Anderson!

      Sabe que eu também admiro muito o jeito que você escreve, principalmente sua concisão pra fazer piadinhas sagazes...rsrs.

      Abraços efusivos! Gostei muito de ler seu comentário aqui!

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  5. Essa torrada tá com cara de que estava gostosa,viu! kkkkk'

    "Pois é, eu não quis confessar na crônica, mas eu fiquei torcendo pra ele colocar só a torrada no caldo, e não o dedinho sujinho...rsrs."kkkkkkkk

    Estou torcendo para mais crianças entrarem em sua vida..rsrs..assim teremos mais continuaçoes ,ne?! rs

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  6. Hendye, é a isso que chamo de ver Poesia nas pequenas coisas da vida. Esses momentos não têm preço e só quem os vive sabe o quanto significam.

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    1. Com certeza, Fernando! Eu tô aprendendo a ver a poesia do cotidiano...

      E temos poetas maravilhosos para ilustrar esses momentos. Você é um deles!

      (Exemplo: sabe que ficou menos penoso acordar cedo depois do seu "Andy errou"?)

      Obrigada pela visita! Valeu!

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  7. Pequena Little Hendyezinha,

    Tá escrevendo feito gente grande, einh?!!!

    Vou ter de parar de te chamar de "mini dicionário ambulante", pois o apelido já não faz jus à sua estatura poética.

    Beijo.

    Edilza

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