sábado, 29 de setembro de 2012

“Existirmos, a que será que se destina?”¹


Às vezes eu me pergunto, pra que diabos é que estamos aqui, nesse mundão de deus? Por qual motivo passarmos por essa contingência carnal que é a existência, se não há sequer a certeza de uma morte eterna, ao final do suplício?

Há os que sofrem durante toda a vida, desguarnecidos ante as intempéries do existir. De outro lado, há aqueles que passeiam em vida eterna de deleites esplêndidos, herdeiros do Éden, latifundiários da bem-aventurança. E nos há. Nós, os medianos. Nós, os remediados. Nós, cuja vida não é nem Pasárgada nem Gomorra. Nós, de debates mornos e lutas comedidas. Nós, os entusiastas do cotidiano. Nós, os clandestinos das estatísticas oficiais. Nós, os habitantes do limbo sócio-político-econômico-sentimental. Nós, os verdadeiros impostores.

Eu tenho cá essas preocupações, à maneira dos filmes suecos, onde, na ausência de problemas sociais mais prementes a serem enfrentados, eles podem ter o luxo de se angustiarem com as questões existenciais. Culpada pelo conforto de que disponho - exíguo, mas ainda assim privilegiado -, e levemente atormentada pelo mal que não me aflige, eu me pergunto, sempre e sempre: qual o sentido de existirmos?

Não é surpresa que eu não saiba a resposta. Se a soubesse, meu nome constaria nos compêndios de filosofia, com sorte; ou, com azar, na lista negra da Santa Inquisição. Não sei a resposta, e a perspectiva é de que nunca a saberei com segurança. Impossível é o encontro, entretanto busco. Não são bem as respostas que nos fascinam, o que nos instiga são as perguntas – aliás, talvez resida aí a diferença essencial entre psicanálise e autoajuda.

Evito recorrer a uma e a outra, mas estou ainda presa à cercania das indagações. Dizem² que o universo conspira a nosso favor. Isso talvez explique as várias pistas que tenho encontrado mais ou menos ao mesmo tempo, todas apontando para um mesmo caminho. São de autores que aleatoriamente vêm me resgatar³. Luc Ferry, filósofo contemporâneo, e seu “amor de salvação”, que nos salva, dá sentido à vida, revoluciona. Carlos Drummond de Andrade, com seu fatalismo lírico: “que pode uma criatura senão, entre criaturas, amar? Amar e esquecer, amar e malamar, amar, desamar, amar? Sempre, e até de olhos vidrados, amar.” Até mesmo Mário de Andrade, aquele desvairado com mania de correspondência, parece corresponder-se diretamente comigo, pelo seu Noturno de Belo Horizonte, dizendo-me que “o amor é muito maior que a paz”. O universo literário conspirou a meu favor, e agora eu o compreendo. E compreendo aos muitos outros poetas que cantam e cantaram o amor, e o cantarão, a despeito da rudeza dos nossos tempos.

Amor ao próximo, à carne próxima, amor de paixão. Amor de compaixão, o mais difícil e mais sublime: amar ao meu dessemelhante. Amor de perdição, essa cafonice à qual eu me rendo. É o que nos alenta nesse mundo aviltante, é o que nos salva nesse supermercado de almas, é o que faz de nós menos humanos, porque cada vez mais etéreos.

De Almeida Garret conheço um único verso, decorado do livro de literatura do segundo grau. É apenas um verso, poesia incompleta, imagem desprendida a vagar pelos meandros da memória. É apenas um verso, mas tem para mim a força de uma obra completa:

“Esse inferno de amar – como eu amo!”.

Eis a síntese de nossa contradição. Como pode haver, sob a mesma pele frágil, perfumada e perecível do amor, essa força que é nosso alento e ao mesmo tempo nossa danação? Como pode esse descabimento infinito, tão contrário a si mesmo, dar sentido à nossa vida? A compreensão parece advir da poesia, não só a que encontramos nas páginas de poemas, mas aquela que existe em cada ser amoroso (“sozinho, em rotação universal”), no lirismo com que enxergamos o mundo, as criaturas, a dor e a delícia de viver.

Se é nas artes que Deus existe, como ouvi recentemente de uma colega tão perspicaz, é possível que pela poesia comecemos a compreender um dos propósitos de nossa existência.

Hendye Gracielle4



NOTAS
1 – O título é trecho da música Cajuína, de Caetano Veloso.
2 – Quando digo “dizem”, quero dizer Paulo Coelho. Relutei em citá-lo nesse espaço pseudoliterário, mas agora me envergonho da hesitação, e recebo, no perdão dos leitores menos conservadores, os benefícios da confissão premiada.
3 – Obriguei-me a não incluir Chico Buarque, porque se eu começasse a citá-lo, esse texto acabaria num compêndio inesgotável de frases incríveis e impagáveis.
4 - Crônica com notas de rodapé. Isso aqui tá ficando chato, ein!

sábado, 22 de setembro de 2012

Baratas - Lá em casa tem um tanto também...




Dia desses, estando em outra cidade a trabalho, fui convidada a visitar a casa da irmã do ex-namorado da minha colega de trabalho. O parentesco retorcido interpretei como mau sinal, prenúncio de roubada, mas na falta de propostas menos familiares e mais etílicas, acabei aceitando o convite.

Entramos na residência suntuosa (para os padrões locais), e logo no vestíbulo, ignorando toda pompa e sem fazer cerimônia, uma barata cruzou nosso caminho. Não, caro leitor, não se trata de uma metáfora kafkaniana. Foi uma barata mesmo, espécie blatella germanica do filo dos artrópodes, monstro insetídeo que, na mitologia feminina, representa a encarnação de todos os males que um dia escaparam da caixa de Pandora. Eu bem tentei ignorar, mas a própria dona da casa resolveu dar uma desculpa qualquer: “Essas bichas estão em todos os lugares, dominando o mundo, não é mesmo?”.  Pelo contexto, creio que se referia às baratas.  Continuou: “Ainda bem que você não gritou”.

É claro que não gritei; será que me tomou por alguma histérica tresloucada, só porque cheguei com os cabelos desgrenhados? Não gritei, evidentemente, mas também não pude continuar com minha pequena farsa de quem não viu nada. Num acesso de altruísmo, respondi alguma bobagem inverídica, apenas para deixar a anfitriã menos constrangida: “- Ah, é assim mesmo, lá em casa tem um tanto também”.

Péssima frase, mas a palavra pronunciada não dá ré. Em vez de se sentir agradecida pela minha simpática reação, a mulher me olhou com uma cara de asco, nojo de mim e dos meus supostos insetos, e só pela educação que mamãe me deu é que não dirigi os maiores impropérios à dona da casa com baratas. Apenas sorri e continuei andando, já arrependida por não ter gritado e saído correndo dali enquanto ainda estava em tempo.

Ultrapassado o momento das conversas amenas, fofocas e lugares-comuns, finalmente fui convidada à mesa. Quando penso que a noite começará a me revelar suas delícias insuspeitas, de súbito me abandonam as derradeiras esperanças: em lugar da cachacinha, que, por ser típica da região, eu já contava como certa, ofereceram-me um lanche de empadinha com suco de polpa de cacau. Numa palavra: broxante. Mas talvez nem tudo estivesse perdido.

Como eu nunca tinha experimentado suco de cacau, acabei aceitando com relativa boa vontade, porque eu queria saber se aquele líquido branco tinha gosto de chocolate (não tem). Estava a ponto de esquecer meus recentes infortúnios, entregando-me de coração aberto à degustação do tal suco de cacau, quando vejo que o copo que me deram veio com marca de batom! Com calma tento dominar meu nojo, e me convencer de que um copo mal lavado não é nem assim coisa tão grave. Entretanto, rapidamente minha mente demoníaca vem me lembrar do inseto que vimos há pouco, subitamente todos os elementos da cena passam a fazer sentido, começa a me subir uma espécie de gastura nauseabunda, e de repente eu estou convencida de que a marca de batom tenha sido feita pela boca da própria barata!

Foi um delírio que logo passou, mas, por precaução, ajeitei discretamente o copo de modo que meus lábios tocassem apenas seu lado ainda imaculado. Bebi o suco, pois já estava servido, mas recusei os quitutes com veemência, argumentando que estava fazendo dieta. Quiseram saber qual, e eu já ia respondendo “dieta da barata, comecei agora”, mas dessa vez o cérebro foi mais rápido que a língua. Muito convicta de que sairia ilesa, inventei o regime mais improvável que me ocorreu naquele momento: “dieta do chá das cinco, pela qual sempre que o dia do mês for múltiplo de 5 eu só posso tomar infusões preparadas com folhas de chá do Reino Unido”. Qual não foi meu terror quando percebi, de soslaio, a anfitriã se dirigindo a um mato crescido na beirada do seu muro, já me garantindo que havia ali uma moita importada da Inglaterra, que resultava num chá delicioso que ela mesma prepararia.

Desconfio agora que a erva do chá que acabei ingerindo era o mesmo matinho que serviu de esconderijo à barata que vimos horas mais cedo, e que encontrei esmagada junto ao portão de saída, quando finalmente pude me evadir dali. Naquela noite crudelíssima, nem eu nem a barata tivemos escapatória.

Hendye Gracielle

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O desenho que adorna essa crônica é do ilustrador Murilo Silva (murilosilvadesenhos.blogspot.com). A figura foi capturada do blog: papasmiscleo.blogspot.com.br.

Para as pessoas que passam por este singelo blog apenas para se deliciarem com os desenhos do Troche, não fiquem tristes, ele voltará. 

domingo, 2 de setembro de 2012

A culpa é do Jorge





“(...) o Buraco Negro, por onde desaparecem, no infinito do esquecimento
e do nada, os objetos definitivamente perdidos.
(...) Contra o Buraco Negro, por onde nós mesmos um dia
seremos sugados, simplesmente não há solução.”
(Fernando Sabino)



Tem gente que tem mania de perder coisas. Li, em Sabino, que deve existir um buraco negro onde vão parar todas as coisas sumidas e perdidas do mundo. Uma seção cósmica de “achados e perdidos”.

Com toda certeza, lá em casa tem um buraco negro desses. Deve ficar no corredor, cujas coordenadas geográficas são estratégicas para receber os objetos desaparecidos do quarto, do banheiro, da sala e do escritório. E, por sedex, os objetos que perco na rua. Sua profundidade não será medida em palmos, como todo buraco que se preze, mas já em hectares, pois são incontáveis os objetos que consigo fazer desaparecer, como um Midas do ostracismo: tudo o que toco, em vez de virar ouro, desaparece para sempre. A situação é calamitosa. Em minha residência tão mundana, São Longuinho é dos poucos santos para quem eu faria um pequeno oratório e, eventualmente, acenderia algumas velas – isso, é claro, se eu conseguisse encontrar a caixa de fósforos que sumiu anteontem.

Até aí, normal. O que já começa a estranhar é que essa mesma pessoa – no caso, eu – tenha mania também de fazer listas. Todas as modalidades de lista. Tenho as listas clássicas - filmes vistos, livros lidos, livros adquiridos, lugares visitados (com os pormenores de cada passeio), CDs e DVDs, objetos emprestados. E de vez em quando cismo de fazer listas mais insólitas. Hoje mesmo, tendo perdido o terceiro fone de ouvido do mês, pensei em fazer uma lista de objetos que somem. Como não achei a caneta, desisti da empreitada.

É um contrassenso: sumir as coisas normalmente é característica de gente desorganizada; fazer listas, ao contrário, é costume de quem gosta de se organizar. Dizem que sou bastante organizada. Os desafetos dizem mais: que isso, em mim, beira à neurose. Na minha gaveta da sala, os CDs e DVDs estão organizados por ordem alfabética, para facilitar sua rápida localização. Na estante da biblioteca, os livros agrupam-se por categoria: literatura em língua portuguesa, literatura em língua estrangeira, poesia, coleções, livros infantis, livros de cinema, e, relegados às áreas mais empoeiradas e menos acessíveis do móvel, os livros jurídicos dividem espaço com auto-ajuda empresarial. E para ocupar uma vaga nessa minha estante já esquadrinhada, os livros devem antes passar pela catalogação na lista que mantenho no computador (e agora na nuvem do google), onde inscrevo o nome da obra, do autor, editora, procedência e observações relevantes (ex.: se está autografado, se foi comprado em viagem, se foi presente, se foi surrupiado de algum amigo incauto etc). Na minha casa, as coisas têm seu devido lugar – entretanto, somem.

Por isso resolvi escrever essa crônica, que já vai pelo fim – tentativa vã de compreender esse paradoxo existencial: o de ser ao mesmo tempo a pessoa que “faz listas” e a pessoa que “some coisas”. Criaturas assim são, de ordinário, incompatíveis, como já disse. Não podem ocupar o mesmo ser. Cabe exorcizar uma delas, ou, solução mais humana, botar a culpa em alguém.

E como não tenho irmão a quem atribuir meus infortúnios domésticos, só posso crer que, a despeito de todo meu esforço organizacional, existe um ser invisível que sorrateiramente subtrai as minhas coisas e nunca mais as devolve. O leitor que é assíduo dessas pequenas crônicas já advinha que a conclusão possível é somente uma: a culpa é do Jorge.



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PS.: Se você é recém-chegado nessas paragens, e ainda não sabe quem diabos é Jorge, descubra aqui: "Salve, Jorge!".