Às vezes eu me pergunto, pra que diabos é
que estamos aqui, nesse mundão de deus? Por qual motivo passarmos por essa
contingência carnal que é a existência, se não há sequer a certeza de uma morte
eterna, ao final do suplício?
Há os que sofrem durante toda a vida,
desguarnecidos ante as intempéries do existir. De outro lado, há aqueles que passeiam
em vida eterna de deleites esplêndidos, herdeiros do Éden, latifundiários da bem-aventurança.
E nos há. Nós, os medianos. Nós, os remediados. Nós, cuja vida não é nem
Pasárgada nem Gomorra. Nós, de debates mornos e lutas comedidas. Nós, os
entusiastas do cotidiano. Nós, os clandestinos das estatísticas oficiais. Nós,
os habitantes do limbo sócio-político-econômico-sentimental. Nós, os verdadeiros
impostores.
Eu tenho cá essas preocupações, à maneira
dos filmes suecos, onde, na ausência de problemas sociais mais prementes a
serem enfrentados, eles podem ter o luxo de se angustiarem com as questões
existenciais. Culpada pelo conforto de que disponho - exíguo, mas ainda assim
privilegiado -, e levemente atormentada pelo mal que não me aflige, eu me
pergunto, sempre e sempre: qual o sentido de existirmos?
Não é surpresa que eu não saiba a resposta.
Se a soubesse, meu nome constaria nos compêndios de filosofia, com sorte; ou,
com azar, na lista negra da Santa Inquisição. Não sei a resposta, e a
perspectiva é de que nunca a saberei com segurança. Impossível é o encontro,
entretanto busco. Não são bem as respostas que nos fascinam, o que nos instiga
são as perguntas – aliás, talvez resida aí a diferença essencial entre
psicanálise e autoajuda.
Evito recorrer a uma e a outra, mas estou ainda
presa à cercania das indagações. Dizem² que o universo conspira a nosso favor. Isso
talvez explique as várias pistas que tenho encontrado mais ou menos ao mesmo
tempo, todas apontando para um mesmo caminho. São de autores que aleatoriamente
vêm me resgatar³. Luc Ferry, filósofo contemporâneo, e seu “amor de salvação”,
que nos salva, dá sentido à vida, revoluciona. Carlos Drummond de Andrade, com seu
fatalismo lírico: “que pode uma criatura senão, entre criaturas, amar? Amar e
esquecer, amar e malamar, amar, desamar, amar? Sempre, e até de olhos vidrados,
amar.” Até mesmo Mário de Andrade, aquele desvairado com mania de correspondência,
parece corresponder-se diretamente comigo, pelo seu Noturno de Belo Horizonte, dizendo-me
que “o amor é muito maior que a paz”. O universo literário conspirou a meu
favor, e agora eu o compreendo. E compreendo aos muitos outros poetas que
cantam e cantaram o amor, e o cantarão, a despeito da rudeza dos
nossos tempos.
Amor ao próximo, à carne próxima, amor de
paixão. Amor de compaixão, o mais difícil e mais sublime: amar ao meu
dessemelhante. Amor de perdição, essa cafonice à qual eu me rendo. É o que nos
alenta nesse mundo aviltante, é o que nos salva nesse supermercado de almas, é
o que faz de nós menos humanos, porque cada vez mais etéreos.
De Almeida Garret conheço um único verso,
decorado do livro de literatura do segundo grau. É apenas um verso, poesia
incompleta, imagem desprendida a vagar pelos meandros da memória. É apenas um
verso, mas tem para mim a força de uma obra completa:
“Esse inferno de amar – como eu amo!”.
Eis a síntese de nossa contradição. Como
pode haver, sob a mesma pele frágil, perfumada e perecível do amor, essa força que
é nosso alento e ao mesmo tempo nossa danação? Como pode esse descabimento
infinito, tão contrário a si mesmo, dar sentido à nossa vida? A compreensão parece
advir da poesia, não só a que encontramos nas páginas de poemas, mas aquela que
existe em cada ser amoroso (“sozinho, em rotação universal”), no lirismo com
que enxergamos o mundo, as criaturas, a dor e a delícia de viver.
Se é nas artes que Deus existe, como ouvi
recentemente de uma colega tão perspicaz, é possível que pela poesia comecemos a
compreender um dos propósitos de nossa existência.
Hendye Gracielle4
NOTAS
1 – O título é trecho da música Cajuína, de Caetano Veloso.
2 – Quando digo “dizem”, quero dizer Paulo Coelho. Relutei em
citá-lo nesse espaço pseudoliterário, mas agora me envergonho da hesitação, e
recebo, no perdão dos leitores menos conservadores, os benefícios da confissão
premiada.
3 – Obriguei-me a não incluir Chico Buarque, porque se eu
começasse a citá-lo, esse texto acabaria num compêndio inesgotável de frases incríveis
e impagáveis.
4 - Crônica com notas de rodapé. Isso aqui tá ficando
chato, ein!