segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Histórias da carochinha: amigos em Diamantina




Hoje vou falar dos meus amigos. De três, em especial, com quem viajei para Diamantina semana passada. O “Macho Jurubeba”, o “Cara Leve” e a “Coração Gelado”. Não será necessário descrevê-los por perfis psicológicos, características físicas, feições morais. A apresentação será episódica, e logo se lhes conhecerá a alma. Vamos a eles.

O Macho Jurubeba é macho de raiz. Não tem as grosserias do macho alfa, mas não está sob suspeita como o macho metrossexual (embora desconfiemos que ele faz a sobrancelha, mas apenas pra aliviar o peso das pestanas). Ele é fino, mas nem sempre delicado. Ele é engomadinho e limpinho, mas se for preciso anda descalço e come com a mão. Ele é um cavalheiro, mas divide a conta do restaurante, por questão de isonomia constitucional. Ele me censura por usar sacolas plásticas, e pela janela só joga lixo orgânico, que é pra adubar a mãe natureza (embora eu já o tenha explicado que no asfalto nada germina). Ele liga para os pais ao sair e ao chegar. Ele tem um jurubeba móvel, que nos levou até Diamantina. Ele dirige dentro dos limites de velocidade, porque é cioso de nossa segurança. Por isso é que, no primeiro dia, só vimos de Diamantina o sol vespertino, conquanto tenhamos acordado cedo para a viagem. O Macho Jurubeba não se excede em público, porque acha que tem uma reputação a zelar.

Quase um antípoda do Macho Jurubeba, temos a querida Coração Gelado, com quem dividi o quarto do hotel. Nem bem fechamos a porta, ela já espalhou seus pertences pelas três camas disponíveis, zombando da minha necessidade de organização, com seu peculiar: “ah, você é trouxa!”. Com ela no quarto, tive de dormir com o barulho da TV e acordar com o barulho do celular – na sonolência pensei que tinha sido abduzida por uma discoteca voadora não identificada, mas depois descobri que era só o despertador. Nisso tudo, ela nem se abalou, e só depois que eu carinhosamente arremessei o aparelho na sua direção é que Coração Gelado acordou, e ainda me desejou “bom dia!”. “Bom dia pra quem?”, foi a minha resposta mental, entre outros pensamentos impublicáveis.

Coração Gelado não tem frescura, porque frescura é coisa de trouxa. Privacidade é frescura. Guardanapo é frescura. Higiene é frescura. Alimentação saudável é o ápice da frescurice. De manhã, enquanto tomávamos suco, frutas e biscoitos, Coração Gelado bebia um copo duplo de café, frituras e presunto. “Come fruta, Coração Gelado!”, nós lhe dizíamos. “Que frescura é essa de fruta? Fruta é pros fracos. Fruta pra mim é presunto!”. E quem tentará convencê-la do contrário?

Coração Gelado às vezes quase põe tudo a perder. Como no domingo de manhã, feira ao ar livre, artesanatos à venda. Interessamo-nos por um presente que custava quinze reais, e resolvemos pechinchar. Eu habilmente tentando conquistar a simpatia da vendedora, que já estava quase se apiedando da minha pindaíba, quando ouvimos uma voz seca, com sotaque meio paulista, dizer de forma arrevesada: “Dez paga, né”? Era Coração Gelado se pronunciando. Nós nos entreolhamos todos, com cara de “ein?”. A vendedora não entendeu uma palavra, e Coração Gelado repetiu, sem reformular a frase: “Dez paga, né”? Só faltou dizer “mano”. 

Foi o Macho Jurubeba, que é também o rei da lorota, que veio em nosso auxílio, sugerindo à vendedora que não se importasse não: “Coração Gelado é assim mesmo, está achando que aqui é a 25 de março; desde que veio de São Paulo ela ainda não aprendeu outro vocabulário mais amistoso”. Com algum esforço e muito jeitinho, garantimos o nosso desconto, e o dela também.

Enquanto isso, o Cara Leve estava de longe, se rasgando de rir da situação, o que, no seu caso, significa movimentar de leve os lábios num sorriso silencioso, sem se alterar. Mas daí não se conclua que ele seja enfadonho. Pelo contrário, o Cara Leve é divertido, perspicaz, incisivo, cheio de graça – embora não pareça. Sua leveza deve estar escondida na alma.

O Cara Leve tem a voz tranquila, de modo que nunca se sabe quando está brincando, brigando ou simplesmente bocejando. Sua expressão facial não se altera nem em situações extremas, como quando o esganei para a fotografia. Revelada a foto, suspeitei que fosse botox, mas a verdade é que a leveza o deixa sempre com o rosto plácido. O Cara Leve foi nosso guia na viagem, e logo na primeira tarde nos fez caminhar meia maratona atrás de uma festa de universitários, da qual desistimos na penúltima ladeira porque, ao contrário dele, nós não somos tão leves assim.

Mas o Cara Leve nunca incomoda a ninguém, nem quando deseja ser atendido: no carro, pediu-nos gentilmente que colocasse um CD de que ele gosta, e depois de ouvir compenetrado uma meia dúzia de músicas, nos disse com muita leveza: “já estou satisfeito, obrigado, pode trocar o CD se você quiser”. É preciso admitir que eu, com tanto peso (mais no corpo e demais na consciência), queria mesmo era ser leve assim.

Até para fazer chacota o Cara Leve é leve. Ao ver uma fotografia na qual eu estava usando um pijama meio infantil, em vez de rir-se de mim, como os outros fizeram, ele muito calmamente disse algo como: “ah, é um pijama muito lúdico, deve ser quase como dormir com o patati ou o patatá.” (Talvez tenha vindo daí a vontade de esganá-lo).

Se conto todas essas barbaridades dos meus companheiros de viagem, imagino que eles tenham muitas mais a contar de mim. Ainda bem que esse espaço não é democrático, e fica valendo a minha versão irrefutável dos fatos. Para compensar, deixarei fluir o arroubo de sentimentalismo que me acomete, ao falar dos meus amigos (quase sempre) queridos: eles são insubstituíveis, e nossa amizade não tem preço. “Dez paga”?


Hendye Gracielle

domingo, 21 de outubro de 2012

Show do Chico - Parte 3 (final)




Chico é antigo e sempre novo. No show, músicas recentes foram intercaladas aos clássicos, melodias consagradas em harmonia com arranjos moderninhos. Ao longo da noite nos deleitamos ouvindo todas as canções do novo álbum, “Querido Diário”, “Rubato”, “Nina”, “Barafunda”, “Sinhá”, “Sem você 2”...

Eu ainda não quis saber quem é a lambisguete que está namorando Chico Buarque, mas o blues “Essa pequena” e a balada “Se eu soubesse” entregaram: ele está apaixonado! Dessas paixões que nos deixam bobos, ridículos como as melhores cartas de amor: “E aí, larará, larará, liriri...

Chico é apaixonante!


O samba também estava lá, com cara de CD novo. O músico Wilson Neves foi cantar com Chico o dueto “Sou Eu”. Tinha cara e jeito de malandro, e uma voz de sambista que quase apaga o miadinho frouxo de Chico. Mas a combinação deu certo, e com tanta naturalidade passaram ao “Teresa na Praia, não é de ninguém, não pode ser minha, nem sua também” que eu já não sabia se estava em Sampa ou no Rio, no fino da bossa em Copacabana.

Chico é carioca!


Do alheio, além de “Teresa na Praia”, Chico cantou a versão do rapper Criolo para a música “Cálice”. Foi, digamos, inusitado. Na sequência teve arranjo rock and roll para a música Baioque. “Quando choro é uma enchente surpreendendo o verão / é o inverno, de repente, inundando o sertão”.

Junto com “Geni e o Zepelim”, foram os momentos mais agitados do show.  Eu devia estar muito hipnotizada, porque Chico cantou “joga bosta na Geni”, e eu achei lindo! Estava tudo lindo naquela noite.

Chico é lindo!


Também não faltou o desespero elegante das personagens sofridas de Chico Buarque. “Chorei, chorei, até ficar com dó de mim / E me tranquei no camarim / Tomei um calmante, um excitante, e um bocado de Gim”.

Combinou com o bolero “Sob medida”, quando olhou bem nos nossos olhos e cantou: “Eu não presto, eu não presto”. Eu vi cretinice nesse olhar.

Chico é cafona!


Mas Chico Buarque arrebatou a pequena multidão que o assistia, e arrebentou comigo, foi nos momentos em que cantou as delícias de outrora, criadas no tempo da delicadeza.

Foi sublime, foi etéreo, foi inebriante. Ou no meu português corrente: foi de lascar!

“O meu amor”, “Desalento”, “Futuros amantes”, “Teresinha”, “Anos Dourados”. Naquela noite eu ouvi muitas das canções que inundam meu coração, canções que me despertam e canções que me acalentam.

Parece que dizes, te amo, Maria / Na fotografia, estamos felizes”. Veio a emoção, o choro contido, minha alma se abriu por inteiro. Uma mão querida providencialmente tocou a minha, entrelaçamos os dedos, nessa hora eu me salvei e me perdi...

Chico é emocionante!

São Paulo, sexta-feira, 06 de abril de 2012. Eu fui feliz!

***

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quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Show do Chico - Parte 2




Eu daria pra Chico Buarque!

Eu e mais 180 milhões de pessoas, pois Chico é a unanimidade nacional, no dizer de Nelson Rodrigues. E como o mesmo Nelson dizia que toda unanimidade é burra, vamos excluir da conta dois ou três colegas meus que juram que não dariam.

Eu estou com o restante dos mortais, como uma fã que, pelas tantas do show, grita lá da turma do fundão: “Eu te amo, Chico!” E uma voz masculina, do mesmo fundão, responde: “Eu também!”

E que bom que existe a turma do fundão! Eu estava mais ou menos na frente, mais ou menos comportada, e ainda hoje me arrependo de ter reprimido a vontade de subitamente levantar, invadir o palco e agarrar Chico Buarque. Calma, criatura, não se afobe não. Ele é irresistível, mas não é pra tanto.

Oportunamente o pessoal do fundão aprontou uma agitação em coro, com a mais óbvia das ovações: “Chico! Chico! Chico!”. Tá na cara que Chico gostou! A modéstia pode mesmo ser a maior das vaidades. Chico, meio tímido, agradeceu e sorriu.

Riu também quando errou a letra, foi tão discreto, mas eu ouvi! (Eu estava tão atenta, que teria ouvido até um suspiro fora do ritmo). Foi assim: “Afasta de mim esse cálice, pai. De tinto tinto de sangue”.

É claro que ele nem se abalou, mas para nós ficou mais humano, menos mito, um tiquinho mais acessível.

Chico também erra, mas a gente releva e acha bonitinho! Eu achei.

No próximo capítulo: Chico é cafona!


quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Show do Chico - Parte 1


Caro Jorge,

Essa semana faz seis meses que fui ao show do Chico. Como assim qual Chico? Chico só tem um. Os outros não são Chico, são “Chico não sei de que”, “Chico não sei da onde”, Chico Bento, Chico Anísio, Chico Sá, Chico de Dona Maria, Chico do bar da esquina.... Chico, assim em prenome solo, só o Buarque.

E daí, né? Daí que é um pretexto pra eu contar, em três crônicas, como foi o show. Já adianto uma coisa: Chico é lindo! Valeu a viagem, a fila e o rombo na conta bancária.

Saudações, e até a próxima.



SHOW DO CHICO - PARTE 1

Sexta-feira, 06 de abril de 2012. Hall do HSBC Hall, São Paulo. Uisquinho pra lá, canapezinho pra cá...

Chico Buarque de Hollanda em cores, tamanho real. Fila pra tirar foto com o Chico de papelão.

É lógico que eu fui!  Tirei foto com o cartaz, sabendo que não tiraria ao lado do verdadeiro. Comprei o CD novo, sabendo que não seria autografado.

(Aliás, eu tive a desfaçatez de perguntar se os CDs seriam autografados, e o vendedor teve a desfaçatez de rir na minha cara!!! Ah, meu caro, não custa sonhar, e você me vem com zombaria numa hora dessas?)

Todos a postos, devidamente acomodados em suas mesas elegantes e espaços exíguos. Eu confesso! Confesso que algumas vezes passamos os olhos pela platéia, buscando flagrar algum rosto conhecido de celebridade de televisão. Pois não há sempre nos DVDs gravados no Rio ou São Paulo aquelas carinhas conhecidas sorrindo para o seu artista preferido? Bem, tudo que conseguimos foi um sósia do Collor sentando-se à nossa mesa e ameaçando atrapalhar-me a visão. Mas calma, nem tudo está perdido. Empurra a cadeira um pouquinho pra lá, puxa a mesa um pouquinho pra cá, pronto, visão completa do palco e de Chico.

Meu Deus, é Chico mesmo, tô vendo ele todo, que fofo, tô vendo até o pezinho marcando o compasso.

Mais novo que imaginei, tímido, lindo, penteado, perfumado (tenho certeza de que senti seu cheiro! Será que eu tô sonhando?) Começo a ouvir aquela vozinha fraca e quase desafinada: não tô sonhando, é ele mesmo!

Esqueci de tudo, esqueci de quem eu sou e de quem eu não sou, não tem mais ninguém no teatro, não tem mais ninguém no mundo, tô vendo Chico Buarque ao vivo cantando pra mim.

Se eu tiver de sofrer, se eu tiver de penar, se eu tiver de morrer, se houver terremoto ou vulcão, arrastão de pivete ou avião caindo, que não seja agora, meu Deusinho querido, que seja daqui a duas horas, depois do show.

Obrigada, Deus! 

No próximo capítulo: "Eu daria pra Chico Buarque"