Hoje vou falar dos meus amigos.
De três, em especial, com quem viajei para Diamantina semana passada. O “Macho
Jurubeba”, o “Cara Leve” e a “Coração Gelado”. Não será necessário descrevê-los
por perfis psicológicos, características físicas, feições morais. A apresentação
será episódica, e logo se lhes conhecerá a alma. Vamos a eles.
O Macho Jurubeba é macho de raiz.
Não tem as grosserias do macho alfa, mas não está sob suspeita como o macho
metrossexual (embora desconfiemos que ele faz a sobrancelha, mas apenas pra
aliviar o peso das pestanas). Ele é fino, mas nem sempre delicado. Ele é engomadinho
e limpinho, mas se for preciso anda descalço e come com a mão. Ele é um
cavalheiro, mas divide a conta do restaurante, por questão de isonomia
constitucional. Ele me censura por usar sacolas plásticas, e pela janela só
joga lixo orgânico, que é pra adubar a mãe natureza (embora eu já o tenha
explicado que no asfalto nada germina). Ele liga para os pais ao sair e ao
chegar. Ele tem um jurubeba móvel, que nos levou até Diamantina. Ele dirige
dentro dos limites de velocidade, porque é cioso de nossa segurança. Por isso é
que, no primeiro dia, só vimos de Diamantina o sol vespertino, conquanto tenhamos
acordado cedo para a viagem. O Macho Jurubeba não se excede em público, porque acha
que tem uma reputação a zelar.
Quase um antípoda do Macho
Jurubeba, temos a querida Coração Gelado, com quem dividi o quarto do hotel. Nem
bem fechamos a porta, ela já espalhou seus pertences pelas três camas
disponíveis, zombando da minha necessidade de organização, com seu peculiar: “ah,
você é trouxa!”. Com ela no quarto, tive de dormir com o barulho da TV e
acordar com o barulho do celular – na sonolência pensei que tinha sido abduzida
por uma discoteca voadora não identificada, mas depois descobri que era só o
despertador. Nisso tudo, ela nem se abalou, e só depois que eu carinhosamente
arremessei o aparelho na sua direção é que Coração Gelado acordou, e ainda me desejou
“bom dia!”. “Bom dia pra quem?”, foi a minha resposta mental, entre outros pensamentos
impublicáveis.
Coração Gelado não tem frescura,
porque frescura é coisa de trouxa. Privacidade é frescura. Guardanapo é
frescura. Higiene é frescura. Alimentação saudável é o ápice da frescurice. De
manhã, enquanto tomávamos suco, frutas e biscoitos, Coração Gelado bebia um
copo duplo de café, frituras e presunto. “Come fruta, Coração Gelado!”, nós lhe
dizíamos. “Que frescura é essa de fruta? Fruta é pros fracos. Fruta pra mim é
presunto!”. E quem tentará convencê-la do contrário?
Coração Gelado às vezes quase põe
tudo a perder. Como no domingo de manhã, feira ao ar livre, artesanatos à venda.
Interessamo-nos por um presente que custava quinze reais, e resolvemos
pechinchar. Eu habilmente tentando conquistar a simpatia da vendedora, que já estava
quase se apiedando da minha pindaíba, quando ouvimos uma voz seca, com sotaque
meio paulista, dizer de forma arrevesada: “Dez paga, né”? Era Coração Gelado se
pronunciando. Nós nos entreolhamos todos, com cara de “ein?”. A vendedora não
entendeu uma palavra, e Coração Gelado repetiu, sem reformular a frase: “Dez
paga, né”? Só faltou dizer “mano”.
Foi o Macho Jurubeba, que é
também o rei da lorota, que veio em nosso auxílio, sugerindo à vendedora que
não se importasse não: “Coração Gelado é assim mesmo, está achando que aqui é a
25 de março; desde que veio de São Paulo ela ainda não aprendeu outro
vocabulário mais amistoso”. Com algum esforço e muito jeitinho, garantimos o
nosso desconto, e o dela também.
Enquanto isso, o Cara Leve estava
de longe, se rasgando de rir da situação, o que, no seu caso, significa movimentar
de leve os lábios num sorriso silencioso, sem se alterar. Mas daí não se
conclua que ele seja enfadonho. Pelo contrário, o Cara Leve é divertido,
perspicaz, incisivo, cheio de graça – embora não pareça. Sua leveza deve estar
escondida na alma.
O Cara Leve tem a voz tranquila,
de modo que nunca se sabe quando está brincando, brigando ou simplesmente
bocejando. Sua expressão facial não se altera nem em situações extremas, como
quando o esganei para a fotografia. Revelada a foto, suspeitei que fosse botox,
mas a verdade é que a leveza o deixa sempre com o rosto plácido. O Cara Leve
foi nosso guia na viagem, e logo na primeira tarde nos fez caminhar meia
maratona atrás de uma festa de universitários, da qual desistimos na penúltima
ladeira porque, ao contrário dele, nós não somos tão leves assim.
Mas o Cara Leve nunca incomoda a
ninguém, nem quando deseja ser atendido: no carro, pediu-nos gentilmente que
colocasse um CD de que ele gosta, e depois de ouvir compenetrado uma meia dúzia
de músicas, nos disse com muita leveza: “já estou satisfeito, obrigado, pode
trocar o CD se você quiser”. É preciso admitir que eu, com tanto peso (mais no
corpo e demais na consciência), queria mesmo era ser leve assim.
Até para fazer chacota o Cara
Leve é leve. Ao ver uma fotografia na qual eu estava usando um pijama meio
infantil, em vez de rir-se de mim, como os outros fizeram, ele muito calmamente
disse algo como: “ah, é um pijama muito lúdico, deve ser quase como dormir com
o patati ou o patatá.” (Talvez tenha vindo daí a vontade de esganá-lo).
Se conto todas essas barbaridades
dos meus companheiros de viagem, imagino que eles tenham muitas mais a contar
de mim. Ainda bem que esse espaço não é democrático, e fica valendo a minha
versão irrefutável dos fatos. Para compensar, deixarei fluir o arroubo de
sentimentalismo que me acomete, ao falar dos meus amigos (quase sempre)
queridos: eles são insubstituíveis, e nossa amizade não tem preço. “Dez paga”?
Hendye Gracielle