Quem diabos sou eu?


Trabalho em empresa estatal, pra não morrer de fome, e escrevo crônicas, pra não morrer de solidão.

A indecisão vocacional faz parte do meu curriculum vitae – trajetória de vida – desde minha pré-história, embora a consciência disso seja menos longínqua.

Folheando antigos cadernos, redescubro antigos sonhos de criança. Evidentemente estapafúrdios. Como o de ser pintora (de quadros impossíveis), escritora (de bula de remédios), até mesmo costureira (de trajes invisíveis), e, pasmem, advogada (de filme americano - mas já descobri que os tribunais cinematográficos superam com folga nossa insossa realidade forense).   

Houve um breve período em que quis ser webmaster. Aprendi sozinha a programar em linguagem HTML, e fiz dois ou três sites medianos, que ainda hoje navegam à deriva na rede mundial. Empolgada com a informática, frequentei até curso de montagem e manutenção de microcomputadores. O entusiasmo durou até o dia em que meus tímidos conhecimentos tornaram-se obsoletos. Foi bastante rápido, e é claro que não tive ânimo para acompanhar o frenesi da evolução cibernética. Eu ainda não sabia, mas já tinha em Macunaíma meu anti-herói inspirador: “Ai, que preguiça”.

De um extremo a outro, escrevi alguns poemas na adolescência, mas depois de um tempo julguei a temática pueril e a forma pouco revolucionária. Abandonei-os com afinco, e apenas minha avó sente falta daqueles rabiscos.

Cresci, quis ser jornalista, e fui cursar Comunicação Social na UFMG. O curso disponibilizava quatro modalidades de graduação, o que me fez mudar de opinião a cada quarenta e cinco dias. Entrei como jornalista, cogitei “relações públicas”, interessei-me por “rádio/TV”, mas seduziu-me a publicidade. Sendo esta última incompatível com meus ideais libertários, voltei para o jornalismo, definitivamente. Minha aventura acadêmica na metrópole durou até o final do semestre, quando tranquei a faculdade e voltei pra terra do pequi.

O motivo do meu retorno eu nunca soube com clareza, e a cada pessoa que me interpelava eu respondia algo diferente, pensado na hora e esquecido em seguida. Tudo verdade. Certamente houve várias motivações, algumas inconfessáveis. A saudade da família contribuiu, mas só a um amigo imaginário ousaria segredar tal fraqueza sentimental. Às vezes me convenço de que o motivo mais decisivo foi ouvir tantas pessoas dizerem que o jornalista tem a grande responsabilidade de entender de todos os assuntos. Meu fraco ânimo assustou-se com a perspectiva aterradora de saber de tudo um pouco, e escorei-me em Sócrates para elegantemente declinar da responsabilidade: “tudo que sei é que nada sei”. Argumento filosófico irrefutável, e foi o fim de (mais) um sonho.



Abandonado o jornalismo, voltei para cursar Direito na Unimontes. Nos dias úteis eu freqüentava as aulas; nos inúteis, elucubrava profissões que pudessem me resgatar daquele abismo jurídico em que voluntariamente me precipitei. Por razões felizmente esquecidas, pensei em estudar letras, psicologia, psicanálise, sociologia, biblioteconomia, as infinitas variações de engenharia, filosofia, ufologia e zen-budismo. Pensei até em fazer cinema, influenciada pelo Cinema Novo e pela resposta de Joaquim Pedro de Andrade à pergunta “por que você faz cinema?”:

“(...) para que conhecidos e desconhecidos se deliciem / para que os justos e os bons ganhem dinheiro, sobretudo eu mesmo / porque de outro jeito a vida não vale a pena (...)”.

Algo que fizesse minha vida valer a pena, era o que eu procurava. Em vão. É lamentável que não exista um Google para buscas existenciais; para isso temos apenas o divã do analista, que ainda não experimentei, com medo de me viciar. Nesse meio tempo, terminei a faculdade, e o caminho mais óbvio que se me apresentava era o dos concursos públicos de nível superior.

Sempre que penso em prestar novos concursos, sinto uma dor aguda um pouco abaixo da costela direita, que interpreto como prenúncio de tédio, mas acho que pode ser também sintoma de preguiça.

A única carreira jurídica que fez meus olhos brilharem foi a de diplomata, seguramente a menos entediante. Mas para ingressar na diplomacia, devem-se falar três línguas estrangeiras, obstáculo por ora intransponível: no meu inglês “the book is (still) on the table”. De outro lado, je ne parle pas le français, embora tome lições semanais do idioma, o que até agora só me ajudou a pronunciar o nome dos meus cineastas preferidos. E em espanhol sei apenas dois palavrões decorados dos filmes de Almodóvar. Menos cosmopolita do que eu gostaria, só domino mesmo a língua de Camões, ainda assim em parcos vocábulos. Como resultado, a diplomacia acabou virando objetivo de longo prazo, talvez daqui a duas encarnações.

Periodicamente volto a sentir uma inquietante vontade de fazer tudo. Às vezes basta esperar a vontade passar, às vezes não. Há um ditado preconceituoso segundo o qual “quem sabe, faz; quem não sabe, ensina”. Vai ver ao menos a mim ele se aplica, porque tenho freqüentado aulas de pós-graduação em docência, que me habilitarão a lecionar no ensino superior. Só pra completar a mixórdia. (Permito-me abrir um parêntese para dizer que, nem sempre, quem sabe mais, melhor ensina. A boa docência requer generosidade, paciência e didática, atributos  que não se confundem com o conhecimento, embora possam andar juntos – menos nas ciências jurídicas).

No fim de semana passado, minha tia Luciana, que trabalha na área da educação, ofereceu a minha prima vestibulanda um teste vocacional. Intrometi-me na conversa com meu tradicional entusiasmo (graficamente representado pela expressão “uh”):

“- Uh, Tia Lu, eu também quero o teste, pra ver se descubro o que fazer da vida!
- Uai, Grá, talvez você já até esteja no caminho certo.
- É, eu estou no caminho certo, só preciso achar a placa de retorno!”

Seguindo pelo atalho das incertezas, o maior risco que corro é o de ter como epitáfio aquela desencantada máxima anônima: “eu tive um futuro promissor”. Ou aquele poema de Leminski, variação menos lacônica do mesmo tema: “aqui jaz um grande poeta / nada deixou escrito / este silêncio, acredito / são suas obras completas”.

Ainda hoje poder-se-ia perguntar o que vou ser quando crescer. Não tenho a resposta, talvez nem chegue a compreender o alcance da pergunta. Nada sei de interrogações ou exclamações pragmáticas - os meus vinte e poucos anos têm sido pontuados por promissoras reticências...



3 comentários:

  1. Vc um dia saberá qual seu propósito nesta Terra... E tomara q um dia eu tbm!!

    Bj. Dalila

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  2. Quando você encontrar a placa de retorno, avise-me!!!

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    Respostas
    1. Já tô achando difícil encontrar a placa de retorno... Só tenho visto a de "rua sem saída"...

      Obrigada pela visita ao Blog!

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