quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Jeitinho "homo sapiens" de ser

Ao ensejo de minha mudança de emprego, uma cronicazinha que achei esquecida na gaveta...

Causos verídicos do milenar ofício de cobrador
- Ou: “jeitinho homo sapiens de ser”

“O aumento da inadimplência da Caixa Econômica Federal no primeiro trimestre deste ano já é um reflexo das dificuldades que o banco estatal enfrentará até o primeiro semestre de 2015”. (Folha de S. Paulo, 22 de maio de 2014)

“A Caixa Econômica Federal prevê queda em seu índice de inadimplência neste segundo trimestre (...)”. (Agência Reuters de Notícia, 22 de maio de 2014 – mesmo dia)

Dizem ser o meretrício a profissão mais antiga do mundo, do que eu modestamente discordo. Antes de se cuidar das aflições da carne, o mais provável é que se tenham cuidado das aflições do bolso, mesmo naquela época em que estes não existiam, por andarmos nus. Do mais remoto episódio registrado nos anais da história humana, diz-se que a serpente ofereceu a maçã àquela notória estreante do gênero feminino, mas omite-se o fato de que essa mesma serpente era, além de víbora mexeriqueira, uma contumaz devedora nas transações comerciais que se operavam no Paraíso. Há fartas provas, embora apócrifas, de que dona Serpente tinha por hábito dar calote no vendedor de maçãs, além de manter-se inadimplente quanto à maior parte dos serviços essenciais prestados no Jardim Sagrado – gás encanado, telefone, água, fiat lux. Se até os répteis eram notórios devedores no Éden, o mais provável é haver por lá também os respectivos cobradores, a lhes oferecerem diariamente paradisíacas propostas de negociação.

De outra parte, mais científica e menos sacrossanta, renomados centros de pesquisa arqueológica de Harvard e Cambridge apresentaram evidências de que na pré-história a atividade de cobrador já era largamente exercida, consoante comprovam pinturas rupestres nas quais constam imagens de indivíduos de dedo indicador em riste, supostamente negando a existência da dívida a eles imputada. Os pesquisadores descobriram, ainda, uma bem conservada pintura de um animal silvestre sendo repartido em sessenta pedaços iguais, com juros de 1% a.m., o que vem sendo considerado o primeiro parcelamento de que se tem notícia na história da espécie humana. Certo é que, neste ofício milenar e ao mesmo tempo contemporâneo de cobrar dívidas que aqui se fazem e não se pagam, atuam dois tipos básicos de seres, ambos interessantíssimos: de um lado o distinto senhor cobrador; de outro lado, o (não menos distinto) senhor devedor. Vamos a eles.

(Ilustração, como sempre, surrupiada do Gevasio Troche)
A bat-equipe do bat-local onde trabalho dá boas mostras do que vem a ser essa diversidade de tipos, já que a principal atividade do setor é o combate à inadimplência, cobrando dívidas de todo o estado de Minas Gerais.  Pra começar, contamos com dois negociadores nordestinos: Ceará e Paraíba. Com tanto cabra arretado, de vez em quando a negociação vira um “risca‑faca” que sobra até pra quem já é “defunto morto”, como se diz por aí. Certo cliente, ao ser cobrado, argumentou que o seu pai, titular da dívida, já não estava entre os vivos:
- “Mas papai já faleceu”.
Ao que Ceará imediatamente rebateu:
- “Pois vamos resolver logo a situação porque senão pode dar problema pra ele!”.
Problema maior do que já ter morrido? Só se for pendência no SPC do além! Eu, ein!

Se os negociadores são do tipo “risca-faca”, as negociadoras são do tipo “top‑model”. Encantadoras na arte de negociar, o inadimplente não apenas quita a dívida como fica fã da cobradora. Uma colega, que atende pelo codinome de Gisele Bündchen, vive recebendo elogio dos clientes, e há suspeita de que alguns até se tornam reincidentes, para receberem novamente sua ligação. Uns pagam sem pestanejar, outros oferecem alguma resistência, logo vencida. Um deles insistiu para que ela abaixasse um pouquinho mais, mas a resposta foi categórica: “eu só posso abaixar dentro das regras, meu senhor!”. É claro que eles estavam se referido ao valor da cobrança... Com tanta simpatia, das senhoras inadimplentes Gisele vira amiga de infância em dois minutos. Dos senhores devedores, já recebeu algumas propostas de casamento, mas recusou todas, porque maus pagadores não fazem seu tipo. Na verdade, ela está à espera do cliente encantado que a leve pra Dubai, com tudo pago (à vista e sem desconto, evidentemente!).

Também entre os clientes encontram-se os mais variados tipos, do “advogado-embromeixon” ao “rebelde‑sem‑causa”, passando pelo já clássico “não-devo-não-devo-não-devo-mas-cê-parcela-pra-mim?”. E aparece sempre o cliente “Datena”, paladino da moral a esbravejar impropérios:
- “Não devo nada! É um absurdo! Chama as autoridades!”.

De vez em quando topamos com o tipo “surdo de conveniência”:
“- Alô! Bom dia! É o José da Silva?”
“- Bom dia, sou eu sim!”
“- Tudo bem? Estamos ligando pra negociar uma dívida.”
“- Ein?”
“- Negociar uma dívida!”
“- Alô, alô... não tô ouvindo nada!”.

Já apareceu até cliente com crise de personalidade:
“- Alô! É dona Maria?”,
“- Sim. Sou eu”,
“- Tudo bem, dona Maria? Estou te ligando pra negociar uma dívida”,
“- Você quer falar com quem?”
“- Com a senhora mesmo. A senhora não é a Dona Maria?”,
“- Não. Nunca ouvi falar dessa pessoa!”.

Sem contar os mortos-vivos:
“-Aqui é do setor de cobrança, gostaria de falar com o sr. Raimundo”,
“-Tô acabando de voltar do enterro dele”.
Ligamos de novo dias depois, e foi o próprio Raimundo que atendeu. (Depois dessa, estamos cogitamos entrar para o ramo da cobrança mediúnica).

Alguns devedores fazem de tudo e mais um tiquinho pra se esquivar do pagamento da dívida. Mas a inventividade dos cobradores não fica pra trás; fazem um tiquinho e mais um tudo pra receber. Argumentos sensacionais não faltam para ambos os lados – deve ser o que o povo chama de “jeitinho brasileiro”, mas eu chamo de “jeitinho homo sapiens de ser”. Se criatividade pagasse conta, a inadimplência desta espécie já estaria abaixo de zero...

Hendye Gracielle

2 comentários:

  1. Até o diário de uma coisa tão chata quanto cobrança fica leve, divertida e inusitada em suas palavras, Hendye.

    ResponderExcluir
  2. Concordo, Fernando! Essa mocinha é gente grande.
    Faz atividade burocrática parecer coisa agradável e divertida, e faz escrever parecer coisa fácil!

    ResponderExcluir

Eu vou ficar feliz em saber que você passou por aqui! Deixe um comentário!