(Desenhos surrupiados de Troche) |
A gente conhece os vícios
de uma pessoa pela sua maneira de se comunicar com Deus. Já contei em crônica
anterior o efeito do tempo em que fui quase uma workaholic, e me surpreendi
fazendo uma oração burocrática, neste estilo: “Prezado Deus, favor proteger
toda a minha família. Gentileza relevar as falhas, que serão oportunamente
retificadas. Certa de sua compreensão, desde já agradeço, amém”.
Na viagem que fizemos
neste mês a Paraty, eu e meus amigos percorremos mais de dois mil quilômetros
de carro, revezando-nos na direção. Saí de Montes Claros dirigindo, e na
primeira parada foi a vez do Macho Jurubeba (que vocês já conhecem de linhas
passadas) assumir o volante. Antes de dar a partida, não ficamos surpresos ao
vê-lo fazer o sinal da cruz, mas não esperávamos pela concisa oração que ouvimos
em seguida: “#PartiuComDeus”! Isto mesmo, com todas as letras e caracteres:
“hashtag-partiu-com-Deus”! Quanta modernidade para um Macho outrora Jurubeba de
raiz! Descobrimos então que nosso amigo tornara-se um adicto das redes sociais.
As gargalhadas inundaram o carro, mas na hora me veio uma dúvida, que não
verbalizei para não ser também alvo das veementes chacotas dos amigos: será que
Deus curtiu?
Chegando a Paraty, pegamos
uma estrada vicinal que levava à Vila de Corisco, onde nos hospedamos. Após
transpor 5 km e 27 quebra-molas – alguém se deu ao trabalho de contá‑los –
chegamos à Pousada, que logo apelidamos de “Casa da Bruxa”, em decorrência de
seu aspecto ecológico-esotérico-filme de terror. Passamos pela recepção e a
mocinha nos explicou que a entrada para nosso chalé era pela rodovia mesmo; a
trilha interna estava intransitável, porque não dera tempo de limpá-la (fizemos
reserva com três meses de antecedência, mas achamos melhor não abordar este
detalhe). Perguntamos então qual era a chave para abrir a garagem, ao que a
recepcionista respondeu: “Ah, é só meter a mão e abrir”. Opa, agora sim nós nos
sentimos efetivamente no estado do Rio de Janeiro, né não, malandragem?
Metemos a mão no portão,
estacionamos, entramos no chalé, e logo ao chegar observamos várias velas sobre
a mesa, prontas para o uso. Primeiro achamos que se tratava dos preparativos
para algum ritual macabro; mais tarde a energia começou a oscilar, e entendemos
que as velas estavam ali para serem a nossa luz, caso a elétrica faltasse.
Felizmente nada disso aconteceu – nem a falta de energia, nem o ritual macabro
-, e as velas permaneceram intocadas, prontas para assustar as próximas
vítimas, digo, os próximos hóspedes incautos.
Considerando que um de nós
ainda não conhecia o mar, programamos um passeio de barco para o dia seguinte. A
bordo da escuna, passamos a tarde toda só na alegria: cerveja gelada, comida
gostosa, música ao vivo, ilhas paradisíacas (todas particulares, que pudemos
ver, mas não tocar!), mergulho em alto mar. “Mas essa água é muito salgada!”,
exclamou o meu amigo para quem o oceano era inédito! Mas tudo – inclusive a
inocência – tem um preço! No final da tarde chega a conta para pagarmos, e cada
um de nós saca confiante o seu cartão de crédito, milagrosa máquina do tempo
que transforma as dívidas de amanhã nas delícias de hoje! Mas há dias em que o
milagre falha: descobrimos que o barco não aceitava cartão. Na empolgação
etílica em que nos encontrávamos, tentamos resolver discretamente a questão: um
gritou que tinha trazido onze reais e cinquenta centavos, a outra disse que ia contar
as moedinhas da bolsa, a terceira se ofereceu para lavar os pratos, soluções
bastante criativas para se pagar uma conta de três dígitos! As coisas se
resolveram quando voltamos ao cais, e propusemos ir ao banco sacar dinheiro, o
que a dona do barco só aceitou caso um dos tripulantes nos acompanhasse até lá.
Porque “a gente confia, mas não custa prevenir”. Concordamos inteiramente, com carinha
de pessoas honestas (que somos) preocupadas com as vigarices que assolam o
país.
Para superar a pecha de
golpistas acidentais, vestimos a carapuça de “meio intelectuais meio de
esquerda” e fomos para a FLIP – Festa Literária Internacional de Paraty (nossa
amiga Coração Gelado diria que fomos “fingir cultura”, mas isso seria pura
inveja por ela não estar lá). As Festas Literárias são lugares interessantes
porque propiciam que estejamos todos ocupando os mesmos espaços e celebrando em
comunhão: nós, apaixonados por literatura; os autores de sucesso, como Ferreira
Gullar, Xico Sá, Nicolas Behr e outros que perambularam por lá; e artistas
anônimos, que ficam pelas ruas tocando seus instrumentos, vendendo seus
livretos, declamando poemas e cantando, respeitosamente, as mulheres. Numa
madrugada improvisamos um sarau na praça – na verdade foi uma algazarra de
vinhos bebidos no gargalo e poemas declamados pelas metades, mas vamos chamar
de sarau, que é pra elevar o espírito. Não sei se atraídos pelo lirismo dos
versos ou pela euforia do álcool, alguns poetas vieram ter conosco. Educada que
é, nossa camarada Madê foi delicadamente cumprimentar um deles, “Muito prazer”,
ao que ele respondeu, “prazer ainda não tivemos, meu bem”. Ênfase no “ainda”, tratava-se
de um poeta esperançoso. Outro deles, inquirido sobre suas atividades
habituais, declarou que escrevia poemas, ilustrava livros e fazia filhos; deve
ter sido bastante frustrante que nenhuma de nós tenha se interessado em experimentar
as habilidades que ele, com tanta convicção, afirmava ter.
Mas nem só de esculhambação
se faz uma viagem literária. Houve também momentos de tietagem erudita em nossas
aventuras. Conseguimos autógrafos do Milton Hatoum (mediante promessas de
favores sexuais para uma das recepcionistas) e nosso amigo viciado em internet
tirou foto e fez check-in na Adriana Calcanhotto – virtualmente falando, é
claro! A única tristeza que guardo é a de que os nossos planos infalíveis de
levar a Maria Bethânia ou o Xico Sá para um jantarzinho em nosso chalé tenham
falhado. É pena, mas fica como expectativa para uma próxima edição da FLIP. Nossos
delírios não conhecem o limite do improvável: Paraty é uma festa sem fim!
Hendye Gracielle
(A FLIP é uma loucura!) |
***
Leia também a outra parte – em outro estilo – de minhas aventuras de
julho: “Viagem
a São Paulo – relato épico de nossos poucos dias”.
A expressão “Meio intelectual meio de esquerda” está na crônica “Bar ruim é lindo, bicho”, do Antônio Prata, o cronista de nossa geração. Leia na pág. 30 do livro homônimo, ou então aqui: http://blogs.estadao.com.br/antonio-prata/bar-ruim-e-lindo-bicho-1/ .
Abraços efusivos aos meus
leitores invisíveis!
Aventuras etílicas e literárias que, contadas por você, ficam ainda mais deliciosas!
ResponderExcluirEscreva mais, escreva sempre; para o deleite dos seus leitores invisíveis, e de também nós outros.
Madê
Massa!!! Mas não ter dinheiro para pagar a conta foi triste, hehe...
ResponderExcluirE o fingidor de cultura é só o macho Jurubeba.
Dalila.
Quando eu crescer quero ser igual a vc! Rs
ResponderExcluirTe amo...