domingo, 6 de março de 2016

AWÊRY (pelo riso fácil, pela comoção dolorida, pelo espanto de me ver fora de mim)




Ontem.

Ontem eu vi uma arena iluminada virar um caleidoscópio de delícias. Vi redoma de flores, escuro preenchido de aplausos, peraltices de luzes saltitantes. Ontem eu vi um vestido vermelho sonhado de azul.

Ontem eu ouvi o silêncio entre uma batida e outra do tambor do coração; ouvi pau de chuva, canto suave, grito tosco, violino arranhado no escuro. Ontem eu ouvi vozes.

Ontem eu vi uma moça se mover com uma seringa agulhada no pescoço, cantando o desespero de qualquer uma de nós. Sem efeitos especiais, sem truques de montagem, sem playback. Com um corpo, uma existência e uma aflição.

Ontem eu vi um homem acanhado brotando sementes dos bolsos, dos sapatos, das dobras da roupa, das dobras da vida.

Ontem eu vi mulheres desnudarem seus corpos revelando nossas próprias vivências. Vi peles expostas e desejos de sermos nus.

Ontem eu me vi vivendo outras vidas e vi outras vidas vivendo de mim. Vi brincarem a sério com a dor e a delícia de existir. Entendi, desentendi, alucinei, escapei, revigorei, embriaguei, despertei; me acabei de tanto rir.

Um sonho de olhos abertos, uma viagem para dentro, uma inesperada lucidez.   

Ontem... eu fui ao teatro!

****
Obrigada, Awêry Vivências Cênicas. Awery!








(Fotografias lindas da Erica Daniela linda)

sábado, 14 de novembro de 2015

POR QUE VOCÊ FAZ CINEMA?



“Para chatear os imbecis (...) para viver à beira do abismo / para correr o risco de ser desmascarado pelo grande público / para que conhecidos e desconhecidos se deliciem / para que os justos e os bons ganhem dinheiro, sobretudo eu mesmo / porque de outro jeito a vida não vale a pena / para ver e mostrar o nunca visto, o bem e o mal, o feio e o bonito (...) para ser lesado em meus direitos autorais”

(Joaquim Pedro de Andrade /
Resposta musicada por Adriana Calcanhotto)

Eu achava que amor à primeira vista era coisa que não existia. Como Sereia no mar, São Jorge na lua ou gentileza no trânsito. Ou coisa raríssima, como chuva no sertão. Amor à primeira vista pra mim era extraterrestre – dizem que existe, eu quase acredito, mas nunca vi.

Aí a pessoa vai para o primeiro dia de aula da faculdade de cinema e audiovisual – sozinha, tímida, arisca. Ainda em dúvida. Quando o primeiro professor a aparecer na sala se chama Glauber, e o primeiro colega a se apresentar se chama Bergman, você começa a desconfiar de que está no lugar certo. Ou é pegadinha, ou alguma sintonia cósmica tá rolando. Não dá pra não se apaixonar.

As atividades vão acontecendo e você vai se envolvendo mais e mais. Percebe que tem à sua disposição professores incríveis, e incrivelmente acessíveis, professores envolvidos e empenhados como você nunca viu em cursos anteriores (e no meu caso não foram poucos, de faculdade de Direito a curso de saladas para iniciantes). Professores que parecem estar prontos para mudarem o mundo com seu cinema – e também com seus estudos, seu teatro, suas pesquisas, suas reflexões, sua arte... Discutindo questões globais, agindo localmente. Eles são ardilosos e te seduzem para o curso. Não tem como não se apaixonar.  

Oferecem oficinas para colocarmos logo a mão na massa, não tem como não se apaixonar. Organizam uma semana especial para os calouros, não tem como não se apaixonar. Os veteranos começam a mostrar suas produções, surpreendentemente boas, não tem como não se apaixonar. Levam você para fotografar às duas horas da tarde no centro lotado da cidade sob o sol de quase verão; não tem como não se apaixonar. Comentam das dificuldades do curso, limitações de estrutura, problemas da faculdade, mas aí já era – não tem como se desapaixonar.

Você chega se apoiando toscamente nas suas certezas – as minhas eram crítica cinematográfica e carreira acadêmica -, e é sugada por um jardim labiríntico das delícias: pode-se produzir, dirigir, editar, roteirizar, pesquisar, filmar, montar, fazer documentários, clipes musicais, animações, vinhetas educativas, vídeos publicitários (não, obrigada), séries, games, programas de TV, e, até mesmo, fazer cinema no curso de cinema. “Será que eu consigo?” Suas certezas tão bonitinhas são de súbito derretidas, como as películas de antigamente. Plantam-se dúvidas na sua cachola. Como não se apaixonar?

Não foi daqui de Conquista que saiu o cara com “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”? Os equipamentos podem ser poucos, mas estão inteiramente à disposição de nossa criatividade. Aliás, nunca foi tão fácil ter uma câmera na mão. Uma ideia na cabeça já não sei. Mas aí depende de cada um. A ideia a gente inventa, reinventa, desinventa, inventa de novo. A melhor eu já tive: vir estudar, ver e fazer cinema na Bahia!  

Mas para quê?



Para contar histórias mirabolantes. Para mostrar o mundo como ele é. Para mostrar o mundo como poderia ser. Para mostrar o mundo como eu gostaria que fosse. Porque “O Fabuloso Destino de Amélie Poulain” ampliou meu olhar. Porque livro não tem trilha sonora. Para aprender a trabalhar com gente. Para inventar pequenas felicidades. Para experimentar por uns tempos a dor e a delícia de viver de arte. Para sonhar em preto e branco e com legenda de cinema mudo. Porque não é fácil. Para ter meu nome nos créditos finais, mesmo sabendo que ninguém lê. Porque o Cinema Novo existiu. Para amar ainda mais a literatura. Para dirigir um filme com Madê Prates. Porque precisamos de arte, sobretudo em tempo de barbárie e cinismo. Porque passei no SISU. Para escapar da vida de vez em quando. Para torná-la suportável. Porque Woody Allen me persegue. Porque fazer cinema é assim; assado é fazer cinema no interior do Brasil. Porque um dia vi “Ilha das Flores” e nunca mais fui a mesma. Sei lá por quê. Por que não?

Hoje é por isso. Daqui a tantos anos, outras respostas quererão se revelar. Estarei aqui pra escrevê-las. Menos deslumbrada; quiçá ainda mais apaixonada...

Meu lado cético tinha razão: amor à primeira vista é coisa de cinema!

***
Hendye Gracielle
Vitória da Conquista - BA
Desenhos, como sempre, surrupiados do blog do Gervasio Troche.

terça-feira, 12 de maio de 2015

Crônica de aniversário



“Agora eu era o rei, era o bedel e era também juiz
E pela minha lei, a gente era obrigada a ser feliz
E você era a princesa que eu fiz coroar
E era tão linda de se admirar que andava nua pelo meu país”
(Chico Buarque – João e Maria)

Porque sinto como meus todos os seus dias antes de mim, assim como são suas todas as minhas horas antes de sua vinda; por isso celebro, como meu, o seu aniversário.

Foram meus todos os seus minutos, todas as suas dores, todas as lágrimas, todas as quedas, todas as conversas, todas as alegrias, todas as frustrações, todas as banalidades, todas as provações, todas as fantasias, todas as decisões, todas as noites em claro, todas as idas e vindas e voltas e reviravoltas dos caminhos que você percorreu, porque levaram ao irremediável momento em que nossa vida se tocou. Foram meus os seus rumos, foram seus os meus destinos, porque conspiraram sorrateiramente para que nossa vida se complementasse (e se complicasse) tanto e tão irresistivelmente e tão deliciosamente, no tempo em que nós nos apaixonamos.


Celebrar, portanto, não os seus quarenta anos, mas os nossos, posto que são meus todos os dias, todos os meses, todos os anos de sua existência.

Festejar hoje a alegria do amor cultivado com o mesmo desvelo com que se cultivam as flores raras, belas, levemente tóxicas e ainda não nominadas.

E desejar ainda mais.

Aos cinquenta, a bem-aventurança de um refúgio todo nosso: uma casinha com fotos minhas, suas, nossas; seus livros de teatro, meus DVDs em ordem alfabética, sua plantinha frutífera, minha TV alaranjada, sua forma de bolo, minha pasta de recortes, sua mania de perfumes, minha mania de trocar de escova de dentes... 

Aos sessenta, os deslumbramentos e estupefações de um mundo repentinamente acolhedor, que descobriremos lado a lado! (E banhos de chuva, e fotografias insólitas, e cochilos na rede ao entardecer...)

Aos setenta, amar os ocasos, as madrugadas, as alvoradas, as astúcias de uma vida reinventada, os inevitáveis adeuses e os desejáveis regressos. (E filmes velhos, e livros novos, e vinhos raros.)

Aos oitenta, redescobrir o encantamento de nós mesmas, no alvorecer de uma nova estação. (E presentes inesperados, e flores sem motivo, e beijos roubados.)

Aos noventa, lembrar contigo todos os momentos, a vida possível e a que não foi, o tempo vivido e o sonhado... (E poemas trocados, e desejos revelados, e juras de amor.)

Aos cem, a delicadeza do carinho antigo e sempre novo. E quem sabe a coerência suprema do simultâneo desaparecimento: cessado o tempo de coexistir, possamos juntas “desexistir”.

 “Vem, me dê a mão
 A gente agora já não tinha medo
No tempo da maldade acho que a gente nem tinha nascido”

Todas as horas serão nossas; todas as horas e o depois.

Hendye Gracielle
12 de maio de 2015
 
(Desenhos de Gervasio Troche)

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Breve relato das derradeiras emoções do ano que findou
- ou: O Natal da Cidade foi de lascar!!!


Fico indignado quando dizem que cachorro gosta de osso.
Só dão osso ao cachorro, depois dizem que ele só gosta de osso.
Ele adora comida como todo mundo.
Bote um osso e bote um filé para ver qual é que ele escolhe.
Não estão deixando a juventude brasileira entrar em contato com o filé.
Só estão lhe dando osso...”

(Ariano Suassuna, em aula-espetáculo a que assisti em Barbacena,
e em várias entrevistas e palestras que proferiu pelo país,
inclusive em Vitória da Conquista)

Uma tocante homenagem a um dos maiores intelectuais brasileiros, infelizmente recém ido para o céu – Ariano Suassuna –, com direito a instalações artísticas, projeção integral de palestra, murais de xilogravura, bonecos gigantes, exposição de livros.

Uma celebração de manifestações tradicionais, como Terno de Reis, e o incentivo a talentos locais, com concurso de cantores (“Por isso é que eu canto”) e abertura do palco principal para bandas e artistas da cidade.

Tudo isso em espaços públicos – praças e Centro de Cultura Glauber Rocha –, gratuito e aberto para a população, sem área vip, camarote ou cercadinho, só um espaço com cadeiras para quem quiser se sentar, e uma imensa área aberta pra gente ser feliz!

Bom, né? Agora acelera: uma festa da música com os melhores e mais incríveis/competentes/consagrados/inspiradores/delícias/supimpas artistas da música popular brasileira de todos os tempos, inclusive dos tempos de agora – em 2014 foram Paulinho da Viola, Zeca Baleiro, Fafá de Belém, João Bosco, Toquinho, Teatro Mágico, Ana Cañas, Yamandu Costa, Pereira da Viola, Marcos Valle, Roberto Menescal.

Isso tudo eu vi, com esses lindos olhos que a terra demorará a comer, no “Natal da Cidade”, evento anual que acontece em Vitória da Conquista/BA, e no qual, sempre que possível, eu “tô garrada”.

Desenho: Gevasio Troche


A visita ao Memorial, onde estava sendo homenageado Ariano Suassuna, é o início da minha incursão cultural de fim de ano. Ariano Suassuna dispensa comentários, né não? O espaço foi decorado com várias referências às obras e ideias do escritor, e abrigava também o já tradicional concurso de presépios. Eram dez presépios, alguns bastante inusitados, feitos com os mais variados materiais e concepções, dentre os quais uma oca de madeira, toda fechada, apenas com um grande “buraco de fechadura”, através do qual se entrevia a cena natalina; outro era um surpreendente set de cinema, no qual estava sendo filmado o nascimento de Jesus (salve a terra de Glauber Rocha!).

Agora os shows... Ixe (voltei de lá com esse “ixe”), ixe, os shows foram de lascar – que é o mesmo que “da porra” na Bahia, e “do caralho” no resto do Brasil, mas caralho e porra eu não gosto de escrever. Os shows, como ia dizendo, foram de lascar, mas vou falar só um pouquinho, só de alguns, pra não cansar.

Os shows... Teve samba, o melhor do samba, com Paulinho da Viola e suas lindezas: Pecado Capital, Coração Leviano, Foi um rio que passou em minha vida... “Há muito tempo eu escuto esse papo furado dizendo que o samba acabou / Só se foi quando o dia clareou”; essa ele não cantou, mas eu cantei, mentalmente, feliz da vida porque o samba existe e estava ali, ao meu alcance.

E teve a mágica do Teatro Mágico, provando que jovem gosta é de filé, se derem filé pra ele. Tantos garotos e garotas (e eu, essa garota de meia idade) cantando a tolerância, o amor, a amizade, o respeito, a luta por um mundo melhor; tudo sem pieguice, sem mesmice, sem mimimi, só com arte, figurinos, bailarinas, guitarras elétricas e um letrista fodástico. O Teatro Mágico é mesmo um espetáculo!

Fotografia: Hendye Gracielle

Teve mais. Dentro da minha cabeça, teve até revelações literárias... Foi no show de Marcos Valle. Tô ali ouvindo aqueles acordes complexos para letras que parecem tão simples, me deliciando, e num estalo entendo que a crônica é a bossa nova da literatura, ou que a bossa nova é a crônica da música, sei lá. Tudo bem, é possível que outros já tenham chegado a essa conclusão, mas para mim ela aconteceu ali, em pé no meio do público, ouvindo Marcos Valle e Roberto Menescal tocarem “O Barquinho” e “Samba de Verão”. É o cotidiano, a singeleza, a prosa pequena do dia-a-dia, a poesia descalça, despretensiosa, brincando de contar, de cantar. A crônica não tem o fôlego humanista dos grandes romances, assim como a bossa nova não tem as letras profundas da MPB, os sofrimentos dos boleros, os rasgos de voz das grandes cantoras, a rebeldia necessária do Tropicalismo. É simples, mas tocante, como um texto de Rubem Braga, um barquinho à deriva, um dia de sol na praia. Não sei se o mar vai virar sertão, mas ali naquele show o sertão baiano virou mar!

De tanta coisa que eu ainda poderia contar (mas calma, que não vou), teve principalmente o show de Toquinho, na noite de Natal. Esse show, o último do evento, resume bem o encantamento que senti nestes dias de festa e celebração (música boa emociona, né!?): foi encantador ver crianças na plateia cantando empolgadíssimas as suas músicas infantis, como “O Pato”, “A Casa”, “Aquarela”; foi emocionante ouvir a melodia requintada e a letra tão bonita de “O Caderno”, e perceber que se pode enxergar poesia e beleza em objetos prosaicos, e deles fazer metáfora de um curso de vida; foi uma delícia ouvir as grandes parcerias com Jobim, Chico, Vinícius...

No meio do show, Toquinho solando no violão, executando o instrumental de várias músicas, de repente começo a reconhecer a música clássica de Bach – “Jesus, alegria dos homens” -, que foi inacreditavelmente emendada nos acordes de “Asa Branca”, de Gonzagão. Encontro sublime do erudito com o cancioneiro, do clássico com o popular, do universal com o tradicional... Véi, isso é lindo! (Especialmente em épocas de veleidades separatistas de elites pseudo-requintadas, que adoram colecionar Rolex, tomar Chandon e descer até o chão-chão-chão em camarotes “all inclusive”...)


Uma imersão revigorante, esse meu final de ano na Bahia. E uma vontade imensa de que a arte encante muitas e muitas pessoas, cada vez mais, cada vez melhor. Além do “amor-saúde-paz-o-resto-a-gente-corre-atrás” de praxe, isto o que eu desejo em 2015: um ano repleto de arte e cultura; menos osso e mais filé para todos nós. 


Desenho: você já sabe

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Jeitinho "homo sapiens" de ser

Ao ensejo de minha mudança de emprego, uma cronicazinha que achei esquecida na gaveta...

Causos verídicos do milenar ofício de cobrador
- Ou: “jeitinho homo sapiens de ser”

“O aumento da inadimplência da Caixa Econômica Federal no primeiro trimestre deste ano já é um reflexo das dificuldades que o banco estatal enfrentará até o primeiro semestre de 2015”. (Folha de S. Paulo, 22 de maio de 2014)

“A Caixa Econômica Federal prevê queda em seu índice de inadimplência neste segundo trimestre (...)”. (Agência Reuters de Notícia, 22 de maio de 2014 – mesmo dia)

Dizem ser o meretrício a profissão mais antiga do mundo, do que eu modestamente discordo. Antes de se cuidar das aflições da carne, o mais provável é que se tenham cuidado das aflições do bolso, mesmo naquela época em que estes não existiam, por andarmos nus. Do mais remoto episódio registrado nos anais da história humana, diz-se que a serpente ofereceu a maçã àquela notória estreante do gênero feminino, mas omite-se o fato de que essa mesma serpente era, além de víbora mexeriqueira, uma contumaz devedora nas transações comerciais que se operavam no Paraíso. Há fartas provas, embora apócrifas, de que dona Serpente tinha por hábito dar calote no vendedor de maçãs, além de manter-se inadimplente quanto à maior parte dos serviços essenciais prestados no Jardim Sagrado – gás encanado, telefone, água, fiat lux. Se até os répteis eram notórios devedores no Éden, o mais provável é haver por lá também os respectivos cobradores, a lhes oferecerem diariamente paradisíacas propostas de negociação.

De outra parte, mais científica e menos sacrossanta, renomados centros de pesquisa arqueológica de Harvard e Cambridge apresentaram evidências de que na pré-história a atividade de cobrador já era largamente exercida, consoante comprovam pinturas rupestres nas quais constam imagens de indivíduos de dedo indicador em riste, supostamente negando a existência da dívida a eles imputada. Os pesquisadores descobriram, ainda, uma bem conservada pintura de um animal silvestre sendo repartido em sessenta pedaços iguais, com juros de 1% a.m., o que vem sendo considerado o primeiro parcelamento de que se tem notícia na história da espécie humana. Certo é que, neste ofício milenar e ao mesmo tempo contemporâneo de cobrar dívidas que aqui se fazem e não se pagam, atuam dois tipos básicos de seres, ambos interessantíssimos: de um lado o distinto senhor cobrador; de outro lado, o (não menos distinto) senhor devedor. Vamos a eles.

(Ilustração, como sempre, surrupiada do Gevasio Troche)
A bat-equipe do bat-local onde trabalho dá boas mostras do que vem a ser essa diversidade de tipos, já que a principal atividade do setor é o combate à inadimplência, cobrando dívidas de todo o estado de Minas Gerais.  Pra começar, contamos com dois negociadores nordestinos: Ceará e Paraíba. Com tanto cabra arretado, de vez em quando a negociação vira um “risca‑faca” que sobra até pra quem já é “defunto morto”, como se diz por aí. Certo cliente, ao ser cobrado, argumentou que o seu pai, titular da dívida, já não estava entre os vivos:
- “Mas papai já faleceu”.
Ao que Ceará imediatamente rebateu:
- “Pois vamos resolver logo a situação porque senão pode dar problema pra ele!”.
Problema maior do que já ter morrido? Só se for pendência no SPC do além! Eu, ein!

Se os negociadores são do tipo “risca-faca”, as negociadoras são do tipo “top‑model”. Encantadoras na arte de negociar, o inadimplente não apenas quita a dívida como fica fã da cobradora. Uma colega, que atende pelo codinome de Gisele Bündchen, vive recebendo elogio dos clientes, e há suspeita de que alguns até se tornam reincidentes, para receberem novamente sua ligação. Uns pagam sem pestanejar, outros oferecem alguma resistência, logo vencida. Um deles insistiu para que ela abaixasse um pouquinho mais, mas a resposta foi categórica: “eu só posso abaixar dentro das regras, meu senhor!”. É claro que eles estavam se referido ao valor da cobrança... Com tanta simpatia, das senhoras inadimplentes Gisele vira amiga de infância em dois minutos. Dos senhores devedores, já recebeu algumas propostas de casamento, mas recusou todas, porque maus pagadores não fazem seu tipo. Na verdade, ela está à espera do cliente encantado que a leve pra Dubai, com tudo pago (à vista e sem desconto, evidentemente!).

Também entre os clientes encontram-se os mais variados tipos, do “advogado-embromeixon” ao “rebelde‑sem‑causa”, passando pelo já clássico “não-devo-não-devo-não-devo-mas-cê-parcela-pra-mim?”. E aparece sempre o cliente “Datena”, paladino da moral a esbravejar impropérios:
- “Não devo nada! É um absurdo! Chama as autoridades!”.

De vez em quando topamos com o tipo “surdo de conveniência”:
“- Alô! Bom dia! É o José da Silva?”
“- Bom dia, sou eu sim!”
“- Tudo bem? Estamos ligando pra negociar uma dívida.”
“- Ein?”
“- Negociar uma dívida!”
“- Alô, alô... não tô ouvindo nada!”.

Já apareceu até cliente com crise de personalidade:
“- Alô! É dona Maria?”,
“- Sim. Sou eu”,
“- Tudo bem, dona Maria? Estou te ligando pra negociar uma dívida”,
“- Você quer falar com quem?”
“- Com a senhora mesmo. A senhora não é a Dona Maria?”,
“- Não. Nunca ouvi falar dessa pessoa!”.

Sem contar os mortos-vivos:
“-Aqui é do setor de cobrança, gostaria de falar com o sr. Raimundo”,
“-Tô acabando de voltar do enterro dele”.
Ligamos de novo dias depois, e foi o próprio Raimundo que atendeu. (Depois dessa, estamos cogitamos entrar para o ramo da cobrança mediúnica).

Alguns devedores fazem de tudo e mais um tiquinho pra se esquivar do pagamento da dívida. Mas a inventividade dos cobradores não fica pra trás; fazem um tiquinho e mais um tudo pra receber. Argumentos sensacionais não faltam para ambos os lados – deve ser o que o povo chama de “jeitinho brasileiro”, mas eu chamo de “jeitinho homo sapiens de ser”. Se criatividade pagasse conta, a inadimplência desta espécie já estaria abaixo de zero...

Hendye Gracielle

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Coletivo poético nº 1

Porque nem só de crônica viverá a criatura...
(Ilustração, como sempre, surrupiada do Troche)




sábado, 4 de janeiro de 2014

Reflexões de ano novo: A vida tem mais fases que o jogo do Mário Bros


“Aos 20 anos, eu sabia latim, mas não sabia tomar um bonde.”
(Carlos Heitor Cony)


Você percebe que está se tornando verdadeiramente uma dona-de-casa quando as suas resoluções de ano novo começam a ficar diferentes. Nada de “economizar para a viagem dos meus sonhos”, “estudar para o concurso da Receita Federal”, “fazer matrícula na academia”. Neste ano novo eu me flagrei fazendo planos assim: “não deixar acumular louça suja por mais de uma semana”; “limpar o banheiro antes de começar a feder”; “fazer as compras da semana pelo menos uma vez ao mês”; “tirar o lixo ao primeiro sinal de seres vivos dentro dele”.

Quando a pessoa sai da casa dos pais e vai morar sozinha, ela usa seu senso comum pré‑adquirido em novelas da TV, comédias românticas do cinema, blogs da internet e gibis da Turma da Mônica, medita dois minutos sobre o assunto e acha que está preparada para assumir sozinha todas as responsabilidades de uma casa e da própria vida. Todo mundo conhece esta matemática: das vinte e quatro horas do dia, eu trabalho oito, durmo oito, sobram mais oito horas para o resto. Isso é mais que suficiente pra cuidar da arrumação da casa, da higiene pessoal e ainda sobrar umas horinhas, no fim de semana, para o lazer. Pronto, a pessoa se acha preparada para a lide doméstica, arruma sua trouxa e – trouxa! – vai saltitante enfrentar o mundo.

Não nego que morar longe dos cuidados da mamãe seja ótimo para o amadurecimento pessoal, o fortalecimento do caráter, o crescimento do espírito. Principalmente se a mamãe continua disponível pra te receber de vez em quando, te fazer uns afagos e uma marmitinha quente pra você comer no almoço. Sendo assim, nada de arrependimentos. Mas isto é inegável: ao sair de casa, ninguém está totalmente ciente do que a vida nova lhe reserva.

E os desafios vão sendo surpreendentes. Você sabe que tem de tirar o lixo regularmente, mas só quando começam a aparecer umas minhoquinhas brancas do lado de fora do saco plástico é que você percebe que precisa lavar a lixeira de vez em quando. Você sabe que tem de fazer limpezas periódicas nos cômodos, mas não se lembra da sua mãe tendo de expulsar todo dia os insetos que entram na sua casa toda noite, sabe-se lá por onde. Você nunca havia se dado conta de que sujava tanta roupa, de que o gás acabava tão rápido, de que as vasilhas de plástico que você tem nunca cabem no espaço reservado a elas. Você não fazia ideia de que precisava descongelar o freezer de vez em quando, afinal nunca viu num filme o mocinho tentando abrir a porta presa pelo gelo, ou a mocinha limpando as grades da geladeira. E, acima de tudo, você se sente só: não tem outra pessoa pra lidar com o síndico, o encanador, o eletricista, a moça do censo, o vendedor de enciclopédias e o cachorro do vizinho. Agora é com você!

Você enfrenta isso tudo e vai se tornando mais confiante. Depois de três anos e meio, vai até gostando. Mesmo assim, tomei um susto quando me dei conta de que as necessidades domésticas invadiram meus planos de ano novo. Aprender a me virar sozinha foi importante, mas sempre me bate um medinho de ser dona-de-casa até demais. Acho que gostava de ser do tipo “pseudo-intelectual-pedante-displicente” do que “dona-de-casa-ex-desleixada-quase-exemplar”. Talvez seja só uma fase, dentre tantas que foram e que virão (a vida tem mais fases que o jogo do Mário no SuperNintendo). Hoje, quando passo por algum shopping center, o que mais ocupa o meu tempo e leva meu dinheiro ainda são as livrarias. Mas – perigo! – as lojas da Tok & Stok já estão em segundo lugar...

 
(Ilustração: Gervasio Troche)


***
Posfácio absolutamente inútil:

Ela: “Que delícia, adorei a crônica! Mas deixa eu te dar uma dica, só pra atualizar.”
Eu: “É sobre o vendedor de enciclopédias”?
Ela: “Não. É que as fases do Mário são extremamente limitadas se você já jogou AQW.”
Eu: “Hein?”
Ela: “Esse é um jogo que meus meninos jogam. Não acaba. Simplesmente.”
Eu: “Ah, mas não é o jogo que EU joguei”.
Ela: “É mesmo! Óbvio que quem tá na fase de dona de casa se lembra é do Super Mário mesmo!”
Eu: “Mas eu não poderia dizer que a vida tem mais fases que o AQW...”
Ela: “Por quê?”
Eu: “Porque a vida acaba!”
Ela: “Credo. Até numa crônica tão fofa você consegue vir falando, ainda que nas entrelinhas, sobre a efemeridade da vida!!!”
Eu: “O.o”

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

RÉQUIEM PARA FLORES - Pequena crônica de adeus

"– A vida, senhor Visconde, é um pisca-pisca. A gente nasce, isto é, começa a piscar. Quem pára de piscar chegou ao fim, morreu. Piscar é abrir e fechar os olhos – viver é isso. (...). Um rosário de piscados. Cada pisco é um dia. (...) e por fim pisca pela última vez e morre.”
(Monteiro Lobato)



O fato mais assombroso da vida é viver e, de repente, não viver mais. A pessoa existir durante a vida inteira e, num segundo, desexistir. E esse segundo ser pra sempre. E o “pra sempre” ser igual a “nunca mais”.

A morte é mesmo o paradoxo da vida. Seu oposto e sua continuação. Seu natural e sua negação. Mesmo certa para todos os viventes, quando chega, com ou sem prévio aviso, nunca deixa de surpreender. É porque se morrerá um dia que se dá valor à vida. E quando uns morrem é que outros aprendem a viver.

A astronomia nos ensina que continuamos a perceber o brilho das estrelas mesmo após elas já terem desaparecido do universo. E que quanto maior a estrela, menor seu tempo de existência. A astronomia nos ensina para a vida.

Embora dispersos pelo mapa, estamos todos juntos no cais de partida, acenando com a mão as mais sentidas despedidas ao navio que parte levando uma pessoa que aprendemos a amar. Felizes pelo (breve) encontro, angustiados pela (incompreensível) partida, inseguros, mas acreditando que nenhum navio parte sem rumo, nenhuma pessoa parte sem explicação.

Por isso temos braços longos para os adeuses (...)
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.
(Vinicius de Moraes)

Adeus, Lívia Flores. Adeus, Lívia Estrelas.

Até quem sabe. A Deus.

Fiquemos em paz.


Para meu Tio querido. 

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

É bom quando a elite mostra sua cara



É bom quando a elite brasileira mostra a sua cara. Nos episódios mais recentes da badalada cena política nacional, a elite brasileira assumiu a alcunha de Classe Médica. E esteve muito bem representada pelos indivíduos que foram aos aeroportos hostilizar os novos médicos entrantes no país. Não há que se falar numa “pequena parte”; foi uma amostra representativa da classe representada, assim como os políticos que ascendem a Brasília são uma amostra representativa, em seus laivos de usura, dos valores arraigados na população que eles representam (sim: nós, o povo).

“O todo sem a parte não é todo
A parte sem o todo não é parte
Mas se a parte o faz todo, sendo parte
Não se diga que é parte, sendo todo
(Gregório de Matos)

Ficou difícil? Assim: Brasília é o nosso espelho; os habitantes de seus gabinetes são uma parte do todo que é a nossa população, e espelham os valores médios (ou medíocres) de nossa própria sociedade. Assim também: o jornalista que escreveu sobre “médica com cara de empregada doméstica”, os senhores de branco que chamaram de escravos os médicos cubanos, e outros exemplos ad infinitum, são um espelho da elite – branca, rica e heterossexual (fora de casa, pelo menos) – que sempre ocupou os espaços de prestígio na sociedade. O exercício da medicina é um desses espaços, mas há outros, como o dos industriais, grandes empreiteiros, latifundiários, magistrados... Ousassem incomodar a uma dessas classes, e veríamos cenas semelhantes, diferindo apenas o traje branco pelo de terno e gravata, ou pela bota e espora. Ou talvez com um pouco mais de discrição: não dariam a face a tapa, usariam para tanto lobistas de bastidores. Por isso é que é bom quando a elite brasileira mostra a sua cara.

A falta de recursos para o sistema público pode ser o principal fator do problema da saúde no Brasil (ou melhor, o dinheiro é muito, porém muitas mais são as torneiras de desvio da fonte até a foz). Isso, entretanto, não deveria eximir os médicos de bem exercerem o seu mister. Um médico recém-formado não pode dedicar dois anos de sua promissora vida profissional para atuar compulsoriamente no SUS (sendo remunerado para isso, entenda-se bem)? Não pode perder o brilho de seu status passando alguns anos no insosso interior do Brasil, a não ser por um salário que exorbite do padrão razoável de remuneração profissional? Não se pode adiar por algum tempo o rentável retorno do investimento que papai fez nas mensalidades das faculdades privadas, ou nos cursinhos preparatórios para as faculdades públicas? Talvez o problema seja a concepção da medicina como um investimento, não como um compromisso ou vocação.

“A praça é do povo / como o céu é do Condor.
É o antro onde a liberdade / Cria águias em seu calor!”
(Castro Alves)

Quando a Medida Provisória 621/2013, que institui o Programa Mais Médicos, ainda estava em discussão, um representante do Conselho Regional de Medicina foi ao jornal local de nossa pequena cidade vituperar contra a proposta. Foram concedidas todas as atenções aos argumentos do distinto senhor; questionado, entretanto, sobre quais seriam as alternativas para os problemas que deram origem à norma, não soube dizer. Ajustadas as proporções, creio que ainda se aguardam as sensatas contribuições que o Conselho Federal de Medicina possa dar aos debates políticos do setor.

A este propósito, interessante notar que antes das prolíficas manifestações populares que envolveram o país nos últimos meses, não se viam os médicos saírem às ruas para protestar por avanços na saúde pública brasileira. Mas alto lá, não sejamos injustos: não só os médicos, mas também outros grupos historicamente conformistas, tiveram surpreendentes surtos de militância nos últimos meses, embelezando a estampa das manifestações que tomaram as ruas do Brasil. A praça é do povo, como o céu é do Condor, mas doravante há de se delimitar uma área VIP, com sombra e água fresca pra quem não está acostumado ao calor de 40° do sol de todos os dias.

É cômodo pegar o bonde já em movimento: às vezes, não se trata de lutar por melhores condições de vida para todos, mas de garantir a manutenção da reserva de mercado já existente. Não há novidades; é postura típica dos caras-pálidas das superiores castas tupiniquins, de que a maioria dos médicos é uma pequena parte, não o todo.

“Minha terra tem palmares 
onde gorjeia o mar (...)
Minha terra tem mais ouro
Minha terra tem mais terra”
(Oswald de Andrade)

O todo é a mesma elite, por exemplo, que se diz vítima de preconceito porque não se enquadra em nenhuma cota instituída pelo governo. A reclamação, a bem da verdade, tem fundamento: quem sempre teve a cota total dos privilégios, públicos e privados, não vai mesmo gostar de dividir o espaço com essa gente pobre, negra e deficiente que se cansou de Palmares e quer tomar o Brasil. E imagina quando, das universidades públicas brasileiras, começarem a sair bacharéis com cara de empregada doméstica, com cara de escravo, com cara de cubano, com cara de Brasil. Você sabe com quem está falando? Vai ficar mais difícil saber.

Pensando bem, solidarizemo-nos com as alvas criaturas que terão seus empregos usurpados pelos doutores estrangeiros. Tadinhos! Deve ser mesmo muito difícil ser “bem nascido” num país excludente como o nosso. São as lamúrias de uma elite que pensa que é dona do Mundo – e do Brasil, por extensão.

Hendye Gracielle
(tentando aprender com Oswald de Andrade a não ter medo de polêmica)

sábado, 27 de julho de 2013

Crônica de Viagem: Paraty é uma festa!

(Desenhos surrupiados de Troche)

A gente conhece os vícios de uma pessoa pela sua maneira de se comunicar com Deus. Já contei em crônica anterior o efeito do tempo em que fui quase uma workaholic, e me surpreendi fazendo uma oração burocrática, neste estilo: “Prezado Deus, favor proteger toda a minha família. Gentileza relevar as falhas, que serão oportunamente retificadas. Certa de sua compreensão, desde já agradeço, amém”.

Na viagem que fizemos neste mês a Paraty, eu e meus amigos percorremos mais de dois mil quilômetros de carro, revezando-nos na direção. Saí de Montes Claros dirigindo, e na primeira parada foi a vez do Macho Jurubeba (que vocês já conhecem de linhas passadas) assumir o volante. Antes de dar a partida, não ficamos surpresos ao vê-lo fazer o sinal da cruz, mas não esperávamos pela concisa oração que ouvimos em seguida: “#PartiuComDeus”! Isto mesmo, com todas as letras e caracteres: “hashtag-partiu-com-Deus”! Quanta modernidade para um Macho outrora Jurubeba de raiz! Descobrimos então que nosso amigo tornara-se um adicto das redes sociais. As gargalhadas inundaram o carro, mas na hora me veio uma dúvida, que não verbalizei para não ser também alvo das veementes chacotas dos amigos: será que Deus curtiu?

Chegando a Paraty, pegamos uma estrada vicinal que levava à Vila de Corisco, onde nos hospedamos. Após transpor 5 km e 27 quebra-molas – alguém se deu ao trabalho de contá‑los – chegamos à Pousada, que logo apelidamos de “Casa da Bruxa”, em decorrência de seu aspecto ecológico-esotérico-filme de terror. Passamos pela recepção e a mocinha nos explicou que a entrada para nosso chalé era pela rodovia mesmo; a trilha interna estava intransitável, porque não dera tempo de limpá-la (fizemos reserva com três meses de antecedência, mas achamos melhor não abordar este detalhe). Perguntamos então qual era a chave para abrir a garagem, ao que a recepcionista respondeu: “Ah, é só meter a mão e abrir”. Opa, agora sim nós nos sentimos efetivamente no estado do Rio de Janeiro, né não, malandragem?

Metemos a mão no portão, estacionamos, entramos no chalé, e logo ao chegar observamos várias velas sobre a mesa, prontas para o uso. Primeiro achamos que se tratava dos preparativos para algum ritual macabro; mais tarde a energia começou a oscilar, e entendemos que as velas estavam ali para serem a nossa luz, caso a elétrica faltasse. Felizmente nada disso aconteceu – nem a falta de energia, nem o ritual macabro -, e as velas permaneceram intocadas, prontas para assustar as próximas vítimas, digo, os próximos hóspedes incautos.

Considerando que um de nós ainda não conhecia o mar, programamos um passeio de barco para o dia seguinte. A bordo da escuna, passamos a tarde toda só na alegria: cerveja gelada, comida gostosa, música ao vivo, ilhas paradisíacas (todas particulares, que pudemos ver, mas não tocar!), mergulho em alto mar. “Mas essa água é muito salgada!”, exclamou o meu amigo para quem o oceano era inédito! Mas tudo – inclusive a inocência – tem um preço! No final da tarde chega a conta para pagarmos, e cada um de nós saca confiante o seu cartão de crédito, milagrosa máquina do tempo que transforma as dívidas de amanhã nas delícias de hoje! Mas há dias em que o milagre falha: descobrimos que o barco não aceitava cartão. Na empolgação etílica em que nos encontrávamos, tentamos resolver discretamente a questão: um gritou que tinha trazido onze reais e cinquenta centavos, a outra disse que ia contar as moedinhas da bolsa, a terceira se ofereceu para lavar os pratos, soluções bastante criativas para se pagar uma conta de três dígitos! As coisas se resolveram quando voltamos ao cais, e propusemos ir ao banco sacar dinheiro, o que a dona do barco só aceitou caso um dos tripulantes nos acompanhasse até lá. Porque “a gente confia, mas não custa prevenir”. Concordamos inteiramente, com carinha de pessoas honestas (que somos) preocupadas com as vigarices que assolam o país.

Para superar a pecha de golpistas acidentais, vestimos a carapuça de “meio intelectuais meio de esquerda” e fomos para a FLIP – Festa Literária Internacional de Paraty (nossa amiga Coração Gelado diria que fomos “fingir cultura”, mas isso seria pura inveja por ela não estar lá). As Festas Literárias são lugares interessantes porque propiciam que estejamos todos ocupando os mesmos espaços e celebrando em comunhão: nós, apaixonados por literatura; os autores de sucesso, como Ferreira Gullar, Xico Sá, Nicolas Behr e outros que perambularam por lá; e artistas anônimos, que ficam pelas ruas tocando seus instrumentos, vendendo seus livretos, declamando poemas e cantando, respeitosamente, as mulheres. Numa madrugada improvisamos um sarau na praça – na verdade foi uma algazarra de vinhos bebidos no gargalo e poemas declamados pelas metades, mas vamos chamar de sarau, que é pra elevar o espírito. Não sei se atraídos pelo lirismo dos versos ou pela euforia do álcool, alguns poetas vieram ter conosco. Educada que é, nossa camarada Madê foi delicadamente cumprimentar um deles, “Muito prazer”, ao que ele respondeu, “prazer ainda não tivemos, meu bem”. Ênfase no “ainda”, tratava-se de um poeta esperançoso. Outro deles, inquirido sobre suas atividades habituais, declarou que escrevia poemas, ilustrava livros e fazia filhos; deve ter sido bastante frustrante que nenhuma de nós tenha se interessado em experimentar as habilidades que ele, com tanta convicção, afirmava ter.

Mas nem só de esculhambação se faz uma viagem literária. Houve também momentos de tietagem erudita em nossas aventuras. Conseguimos autógrafos do Milton Hatoum (mediante promessas de favores sexuais para uma das recepcionistas) e nosso amigo viciado em internet tirou foto e fez check-in na Adriana Calcanhotto – virtualmente falando, é claro! A única tristeza que guardo é a de que os nossos planos infalíveis de levar a Maria Bethânia ou o Xico Sá para um jantarzinho em nosso chalé tenham falhado. É pena, mas fica como expectativa para uma próxima edição da FLIP. Nossos delírios não conhecem o limite do improvável: Paraty é uma festa sem fim!

Hendye Gracielle

(A FLIP é uma loucura!)

***
Leia também a outra parte –  em outro estilo – de minhas aventuras de julho: “Viagem a São Paulo – relato épico de nossos poucos dias”.

A expressão “Meio intelectual meio de esquerda” está na crônica “Bar ruim é lindo, bicho”, do Antônio Prata, o cronista de nossa geração. Leia na pág. 30 do livro homônimo, ou então aqui: http://blogs.estadao.com.br/antonio-prata/bar-ruim-e-lindo-bicho-1/ . 

Abraços efusivos aos meus leitores invisíveis!