“Fico
indignado quando dizem que cachorro gosta de osso.
Só
dão osso ao cachorro, depois dizem que ele só gosta de osso.
Ele
adora comida como todo mundo.
Bote
um osso e bote um filé para ver qual é que ele escolhe.
Não
estão deixando a juventude brasileira entrar em contato com o filé.
Só
estão lhe dando osso...”
(Ariano
Suassuna, em aula-espetáculo a que assisti em Barbacena,
e
em várias entrevistas e palestras que proferiu pelo país,
inclusive
em Vitória da Conquista)
Uma tocante homenagem a
um dos maiores intelectuais brasileiros, infelizmente recém ido para
o céu – Ariano Suassuna –, com direito a instalações
artísticas, projeção integral de palestra, murais de xilogravura,
bonecos gigantes, exposição de livros.
Uma celebração de
manifestações tradicionais, como Terno de Reis, e o incentivo a
talentos locais, com concurso de cantores (“Por isso é que eu
canto”) e abertura do palco principal para bandas e artistas da
cidade.
Tudo isso em espaços
públicos – praças e Centro de Cultura Glauber Rocha –, gratuito
e aberto para a população, sem área vip, camarote ou cercadinho,
só um espaço com cadeiras para quem quiser se sentar, e uma imensa
área aberta pra gente ser feliz!
Bom, né? Agora
acelera: uma festa da música com os melhores e mais
incríveis/competentes/consagrados/inspiradores/delícias/supimpas
artistas da música popular brasileira de todos os tempos, inclusive
dos tempos de agora – em 2014 foram Paulinho da Viola, Zeca
Baleiro, Fafá de Belém, João Bosco, Toquinho, Teatro Mágico, Ana
Cañas, Yamandu Costa, Pereira da Viola, Marcos Valle, Roberto
Menescal.
Isso tudo eu vi, com
esses lindos olhos que a terra demorará a comer, no “Natal da
Cidade”, evento anual que acontece em Vitória da Conquista/BA, e
no qual, sempre que possível, eu “tô garrada”.
Desenho: Gevasio Troche |
A visita ao
Memorial, onde estava sendo homenageado Ariano Suassuna, é o
início da minha incursão cultural de fim de ano. Ariano Suassuna
dispensa comentários, né não? O espaço foi decorado com várias
referências às obras e ideias do escritor, e abrigava também o já
tradicional concurso de presépios. Eram dez presépios, alguns
bastante inusitados, feitos com os mais variados materiais e
concepções, dentre os quais uma oca de madeira, toda fechada,
apenas com um grande “buraco de fechadura”, através do qual se
entrevia a cena natalina; outro era um surpreendente set de cinema,
no qual estava sendo filmado o nascimento de Jesus (salve a terra de
Glauber Rocha!).
Agora os shows... Ixe
(voltei de lá com esse “ixe”), ixe, os shows foram de lascar –
que é o mesmo que “da porra” na Bahia, e “do caralho” no
resto do Brasil, mas caralho e porra eu não gosto de escrever. Os
shows, como ia dizendo, foram de lascar, mas vou falar só um
pouquinho, só de alguns, pra não cansar.
Os shows... Teve samba,
o melhor do samba, com Paulinho da Viola e suas lindezas: Pecado
Capital, Coração Leviano, Foi um rio que passou em minha vida...
“Há muito tempo eu escuto esse papo furado dizendo que o samba
acabou / Só se foi quando o dia clareou”; essa ele não cantou,
mas eu cantei, mentalmente, feliz da vida porque o samba existe e
estava ali, ao meu alcance.
E teve a mágica do
Teatro Mágico, provando que jovem gosta é de filé, se derem filé
pra ele. Tantos garotos e garotas (e eu, essa garota de meia idade)
cantando a tolerância, o amor, a amizade, o respeito, a luta por um
mundo melhor; tudo sem pieguice, sem mesmice, sem mimimi, só com
arte, figurinos, bailarinas, guitarras elétricas e um letrista fodástico. O Teatro Mágico é mesmo um espetáculo!
Fotografia: Hendye Gracielle |
Teve mais. Dentro da
minha cabeça, teve até revelações literárias... Foi no show de
Marcos Valle. Tô ali ouvindo aqueles acordes complexos para letras
que parecem tão simples, me deliciando, e num estalo entendo que a
crônica é a bossa nova da literatura, ou que a bossa nova é a
crônica da música, sei lá. Tudo bem, é possível que outros já
tenham chegado a essa conclusão, mas para mim ela aconteceu ali, em
pé no meio do público, ouvindo Marcos Valle e Roberto Menescal
tocarem “O Barquinho”
e “Samba de Verão”. É o cotidiano, a singeleza, a prosa pequena
do dia-a-dia, a poesia descalça, despretensiosa, brincando
de contar, de cantar. A crônica não tem o fôlego humanista dos
grandes romances, assim como a bossa nova não tem as letras
profundas da MPB, os sofrimentos dos boleros, os rasgos de voz das
grandes cantoras, a rebeldia necessária do Tropicalismo. É simples,
mas tocante, como um texto de Rubem Braga, um barquinho à deriva, um
dia de sol na praia. Não sei se o mar vai virar sertão, mas ali
naquele show o sertão baiano virou mar!
De tanta coisa que eu
ainda poderia contar (mas calma, que não vou), teve principalmente o
show de Toquinho, na noite de Natal. Esse show, o último do
evento, resume bem o encantamento que senti nestes dias de festa e
celebração (música boa emociona, né!?): foi encantador ver
crianças na plateia cantando empolgadíssimas as suas músicas
infantis, como “O Pato”, “A Casa”, “Aquarela”; foi
emocionante ouvir a melodia requintada e a letra tão bonita de “O
Caderno”, e perceber que se pode enxergar poesia e beleza em
objetos prosaicos, e deles fazer metáfora de um curso de vida; foi
uma delícia ouvir as grandes parcerias com Jobim, Chico, Vinícius...
No meio do show,
Toquinho solando no violão, executando o instrumental de várias
músicas, de repente começo a reconhecer a música clássica de Bach
– “Jesus, alegria dos homens” -, que foi inacreditavelmente
emendada nos acordes de “Asa Branca”, de Gonzagão. Encontro
sublime do erudito com o cancioneiro, do clássico com o popular, do
universal com o tradicional... Véi, isso é lindo! (Especialmente em
épocas de veleidades separatistas de elites pseudo-requintadas,
que adoram colecionar Rolex, tomar Chandon e descer até o
chão-chão-chão em camarotes “all inclusive”...)
Uma imersão
revigorante, esse meu final de ano na Bahia. E uma vontade imensa de
que a arte encante muitas e muitas pessoas, cada vez mais, cada vez
melhor. Além do “amor-saúde-paz-o-resto-a-gente-corre-atrás”
de praxe, isto o que eu desejo em 2015: um ano repleto de arte e
cultura; menos osso e mais filé para todos nós.
Desenho: você já sabe |
Porra, ficou do caralho! rs
ResponderExcluirSem mais...
Te amo!
De lascar, de lascar!!!
Excluir=)
Valeu! Bjs!
Flávia, penso que esse texto daria um ótimo marketing para prefeito da cidade.
ExcluirDeveriam divulga-lo nas redes sociais e nos jornais locais.
Beijo.